A PERVERSÃO, PRESENTE EM TODAS AS SOCIEDADES HUMANAS

Terezinha Pereira de Vasconcelos

A perversão é um fenômeno sexual, político, social, físico, trans-histórico, estrutural, presente em todas as sociedades  humanas (ROUDINESCO, 2007).

O significado original per vertio, por sua vez derivado de per vertere, remete à noção de “pôr de lado”, ou “pôr-se à parte”.                                                                                Nesse contexto, qualquer conceito pode ser “pervertido”. Sejam os conceitos mais abstratos, como os de conservação, de nutrição, de reprodução, etc, como os conceitos mais concretos. Pode-se dizer que uma versão moderna de uma obra clássica, por exemplo Romeu e Julieta, é uma perversão da história original.

Historicamente, perversões de conceitos morais foram atribuídas a perturbações de ordem psíquica, que dariam origem a tendências afetivas e morais contrárias às do ambiente social do pervertido (FOUCAULT, 1984).

No código penal brasileiro até a lei 7.015/2009 alguns comportamentos considerados como perversão, juridicamente eram classificados como “Atentado ao pudor” e “Atentado violento ao pudor” quando alguns “tipos penais” foram modificados. A pedofilia, por exemplo no Brasil, atualmente enquadra-se no estupro de vulnerável. Observa-se a relação entre os costumes, a organização social e o comportamento individual, identifica-se modernamente, através da psiquiatria transcultural, uma via de mão dupla entre o evidente papel da cultura na construção da personalidade e da psicopatologia, como da patologia dos líderes na gêneses de fenômenos coletivos como a via de regra do estupro de familiares dos inimigos ou impulsos e personalidades sádicas selecionadas para tortura militar.                                    Numa perspectiva sócio-histórica e clínica, a perversão poder-se-ia constituir em uma única anomalia psíquica do indivíduo, ou fazer-se acompanhar por alguma doença mental intercorrente. O comportamento do pervertido seria, então, determinado pelo seu nível intelectual: enquanto as perversões dos com o “nível intelectual inferior” seriam impulsivas, brutais, praticadas sem rebuço, as dos “indivíduos de bom nível intelectual” seriam quase sempre astuciosas, dissimuladas, encobertas. Entre os atos mais frequentemente apontados como perversões, por se desviarem de forma mais grave do comportamento tido como normal do ponto de vista social, são atos tidos como desvios sexuaissadismomasoquismopedofiliaexibicionismovoyeurismo, etc.

Sabe-se que a masturbação também já foi considerada uma modalidade de perversão sexual no passado (FREUD, 1904; FOUCAULT, 1984).

Na medicina moderna quando o comportamento individual de excitação sexual somente se dá em resposta a objetos ou situações diferentes das tidas como normais, e quando esse comportamento interfere na capacidade do indivíduo de ter relações sexuais e/ou afetivas tidas como normais, dá-se o nome a essa disfunção de parafilia (KERNBERG, 1998).

Segundo os diversos estudiosos da perversão, alguns sintomas são frequentemente encontrados em pessoas com esta estrutura patológica:

Simbolização flexível: Devido à sua subversão aos ditames sociais tidos como verdades, aplicáveis em contextos culturalmente determinados, o perverso percebe o mundo através de um descolamento parcial entre signo e significado, que, comparado à percepção simbólica restrita acometida aos neuróticos (e ainda mais restrita, no caso de pessoas estruturadas psicoticamente), lhe possibilita uma margem de percepção menos restrita aos discursos sociais (sejam dominantes ou alternativos), porém também o traz um incômodo com uma falta de proximidade em seus laços com outras pessoas, graças à falta de significado emocional de símbolos socialmente difundidos.

  • Fetiche: Apesar do distanciamento entre signo e significado ser maior do que do neurótico, o perverso também possui emoções atreladas à simbolização, porém de forma muito mais concentrada, dada a escassez de símbolos emocionalmente significativos. Assim, frequentemente perversos concentram sua libido em um único, símbolo valorativo, que independe da pessoa que o carrega (pode ser uma característica de uma parte do corpo, algum adereço, cheiro, ou qualquer forma a ser percebida e atribuída valor). Há perversos que encontram restrição a um único símbolo atrelado à sua sexualidade e grande carga emocional, encontrando dificuldades para relacionar-se pessoalmente com a pessoa que carrega tal característica, mas também é possível uma flexibilidade aberta à ressignificação para uma ampla gama de formas perceptivas.
  • Sedução: Graças à sua flexibilidade simbólica, não raro o perverso encontra-se distante das representações sociais que aproximam pessoas com um senso de união, o que o leva à possibilidade de utilizar-se de tais recursos sem envolver-se emocionalmente. Assim, diversas formas de comunicação com peso emocional, como a incitação sexual, o choro, a dependência financeira, perversos podem influenciar de forma que são percebidos em seus relacionamentos. Tal possibilidade é frequentemente (e as vezes compulsivamente) utilizada para satisfazer a necessidade que sentem de manutenção de sua organização fantasiosa de si e de mundo. Assim, grande parte de seus recursos psíquicos mobilizam-se para a manutenção de padrões de relacionamentos com um senso de controle, devido ao significativo terror que sentem quanto à movimentação autônoma do outro, que revive temores primordiais de serem controlados pelas expectativas e significações alheias que não respeitaram sua individualidade.
  • Escolha narcísica de objeto: Um perverso procura estabelecer relações mais íntimas com aqueles que se assemelham com ele ou por quem ele tem inveja (ou seja, quer ser como). Sua escolha homossexual de objeto o leva a ter amor somente por si mesmo. Quase nunca leva em consideração os sentimentos e necessidades do outro. A escolha sexual, apesar de ser narcísica, não esta limitada à homossexualidade. Há perversos que mantém relações sexualmente heterossexuais mas, psiquicamente, homossexuais (no sentido de relacionar-se com seu próprio ego através do relacionamento com o outro). A opção homossexual também não se restringe a estrutura perversa podendo também aparecer nas psicoses e nas neuroses, como bem observou FreudMelanie KleinMasud Khan e Lacan.
  • Incômodos com a autoridade/moral/lei/ritual social: Perversos não reconhecem valor em autoridades, e por extensão, também não valorizam as leis e as verdades que tais autoridades ditam. Continuam, porém, com uma abertura simbólica e com uma percepção de realidade, o que os leva a uma incongruência interna, uma vez que significantes têm de ser transmitidos por alguém. Perversos, assim, se sentem desconfortáveis quanto à ambivalência apresentada pela autoridade (e autonomia) de um chefe, parceiro, juiz, policial, professor, pai, ou de qualquer outro papel social normativo. Quando acabam por aceitar uma ordem ou demanda, encontram-se com dificuldade para a execução, podendo distorcer ou sabotar uma tarefa, por não perceber sentido nela.

Historicamente, perversões de conceitos morais foram atribuídas a perturbações de ordem psíquica, que dariam origem a tendências afetivas e morais contrárias às do ambiente social do pervertido (FOUCAULT, 1984)                                                                       Os estudos sobre perversão na psicanálise podem ser divididos em três momentos: o primeiro momento se relaciona com a publicação de “a neurose é o negativo da perversão” publicado em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”; o segundo momento se refere à teoria do Complexo de Édipo, que se caracteriza o núcleo das neuroses e das perversões; no terceiro momento Freud define a recusa da castração como mecanismo essencial da perversão.

Segundo Castro (2004), “num primeiro momento de construção teórica freudiana, a expressão perversão sexual designava a qualidade aberrante da própria sexualidade”, o que, em algum nível, encontrava-se em consonância com a visão médica vigente. Vamos observar como a escuta psicanalítica do sintoma perverso foi aos poucos modificando esse entendimento até que Freud chegasse à noção de perversão como condição básica da sexualidade.

De acordo com Freud (1905), a neurose é o negativo da perversão, tendo uma estreita relação com a teoria do Complexo de Édipo, que define a recusa da castração como mecanismo essencial da perversão.

Nesta obra, Freud trata da perversão como desvio da conduta sexual que não visa a genitalidade. Assim, toda criança, ao autossatisfazer-se sexualmente, poderia ser considerada perversa. Portanto, o conceito de recusa aparece como um mecanismo normal da construção da sexualidade. Posteriormente é superado, pois a castração aceita e os desejos incestuosos, juntamente com os desejos de completude, sucumbem ao recalque na normalidade, o que difere da perversão (PFITSCHER; BRAGA, 2012).

O sujeito de estrutura perversa mantém-se, contudo, excluído do Complexo de Édipo e da alteridade, passando a satisfazer sua libido sexual consigo mesmo, sob caráter narcísico. Tal estrutura dá-se por meio de uma fixação numa pulsão parcial que escapou ao recalque, tornando-se uma fixação exclusiva. A recusa da criança, em aceitar a falta fálica da mãe, ocasiona a recusa da percepção da castração, que retorna à ideia da figura da mulher com o pênis, origem da fantasia da mulher fálica (SEQUEIRA, 2009). O que ocorre na estrutura perversa é a castração edipiana: o perverso não aceita ser submetido às leis paternas e, em consequência, às leis e normas sociais (SEQUEIRA, 2009)

O termo perversão tornou-se um conceito para a área por volta de 1896 quando Sigmund Freud o colocou lado da psicose e da neurose. Desse modo, a perversão encontra-se em um amplo campo de estudo, tendo em vista que engloba comportamento, práticas e fantasias correlacionados à norma social.

Outro aspecto importante a ser mencionado é que a perversão tanto no Ocidente quanto no Oriente, sempre esteve baseada em múltiplas formas que variaram conforme as épocas, culturas, costumes etc.

Deste modo, a perversão está associada ao momento histórico e cultural de uma determinada sociedade. No Ocidente, por exemplo, a homossexualidade na Grécia Antiga era vista como algo natural. Com o advento do Cristianismo a prática passou a ser considerada satânica e no século XIX, como algo totalmente anormal para o ser humano.

No século XX, em 1974, a homossexualidade foi reconhecida como mais uma forma de sexualidade não figurando no terceiro Manual Diagnóstico Estatístico dos Distúrbios Mentais (DSM III) editado em 1987, como parafilias.

Para Freud inicialmente, a perversão (homossexualidade) apresentava  uma ambivalência. Como salientam Roudinesco&Plon[1],

(…) a “disposição perverso-polimorfa” ao homem em geral e, com isso, rejeita todas as definições diferencialistas e não igualitárias da classificação psiquiátrica do fim do século, segundo a qual o perverso seria um “tarado” ou um “degenerado”, porém, por outro, ele conserva a ideia de norma e de um desvio em matéria de sexualidade. (…)

Em 1905, no seu livro Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, Freud utiliza o termo “perversões sexuais” e emprega mais frequência o termo “inversões”. Com o passar do tempo Freud iria mudar sua terminologia a partir de novas reflexões.

Para Freud, a neurose seria o “negativo da perversão”. Sendo assim, o pai da Psicanálise apontava para o caráter selvagem, polimorfo e pulsional da sexualidade perversa.

Ao contrário da sexualidade neurótica, a perversa não conhecia o recalque, o incesto e a sublimação. A falta de limites decorria em virtude do desvio em relação a uma pulsão, uma fonte (órgão), objeto e alvo. A partir dessas constatações Freud distinguiu dois tipos de perversões: a de objeto e a de alvo.

A partir de 1915, Freud  reformulou sua observações. Da descrição das perversões sexuais Freud passou para a organização como um modelo baseado clivagem.

Assim,

(…) “Ao lado da psicose, definida como a reconstrução de uma realidade alucinatória, e da neurose, resultante de um conflito interno seguido de recalque, a perversão aparece como uma renegação ou um desmentido da castração, com uma fixação na sexualidade infantil”[2].

Jacques Lacan colocou a perversão com uma estrutura, retirando-a do campo do desvio. A abordagem lacaniana introduziu as noções de desejo e gozo. Deste modo, a perversão seria um componente inerente a psique do homem.

Com tal perspectiva, a perversão saiu do campo sexual e tornou-se “tratável” no campo psicanalítico, deixando de ser um perigo para a sociedade.

Como assinalamos acima, Lacan conseguiu reformulou abordagem freudiana facilitando o acesso do perverso ao tratamento psicanalítico. O fim da “incurabilidade” para perversão foi de fundamental importância na tentativa formular melhores perspectivas para o perverso.

Conclusão Final

O que nos permite concluir é que, o conceito de perversão esteve imbuído de preconceitos, estigmas e ideias moralistas ao longo do tempo. Com o advento da Psicanálise, esse termo ganhou um novo redirecionamento, se caracterizando com um conjunto de comportamentos que buscam o prazer de modo continuado. É a partir da infância que essa estrutura se constrói e se desenvolve no mundo adulto com base na fixação do desvio quanto ao objeto do desejo (que aparece pela via da atuação, ou , dito de outro modo, o perverso age, ele encena o desejo) e pela exclusividade de sua prática. Dentro da sua sociedade, cabe ao próprio indivíduo, relacionar e discernir o normal e o “pervertido”, já que o “aceitável” nada mais é que uma convenção social. Com Freud aprendemos que somos necessariamente seres sexuais, transferindo, recalcando, liberando nossa libido, e variando inclusive nosso objeto de interesse ao longo da vida, estando ele dentro da perversão, ou não. Assim entendemos o conceito de estrutura perversa e discutimos a perversão á luz da Teoria Psicanalítica. A argumentação freudiana também aponta para a universalidade do complexo de Édipo, que hoje encontra amparo na constatação de que o surgimento do desejo (falta) deriva da aquisição da linguagem (oral ou gestual),processo que permanece idêntico em todas as culturas.

BIBLIOGRAFIA

_______. Fetichismo (1927). Op. Cit. Vol. 21

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1984

FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo (1914). Edição Standard das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972 v. 12

KERNBERG, O. Perversão, perversidade e normalidade: diagnóstico e considerações terapêuticas. Revista Brasileira de Psicanálise, 32(1):67-82, 1998.

LACAN, Jaques. Seminário 5 – A Formação do Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

MIRANDA, Alex Barbosa Sobreira. Um Estudo sobre o Conceito de Perversão. UESPI – Teresina, PI, 2013.

ROUDINESCO, e. & Plon, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.

_______. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Op. Cit. Vol. 7


[1] Dicionário de Psicanálise. E. Roudinesco& Michael. Rio de Janeiro,Jorge Zahar Editor, p. 584

[2] Op. Cit., p. 585.