Retificações no registro de imóveis: espécies e aplicações

Por: Luiz Henrique Ferreira Sacchetto – Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela UMSA em parceria com o IUNIB. Bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie e Oficial do Registro de Imóveis de Guaranésia – MG. E-mail: luizsacchetto@bol.com.br

1. Introdução

 

No Brasil, segundo dispõe a legislação civil, o registro imobiliário em regra tem presunção relativa de veracidade, juris tantum, ou seja, até prova em contrário, exprime a verdade. Já em países onde esta presunção é absoluta, dita juris et de jure, como no caso da Alemanha, por exemplo, o registro representa a verdade de modo incontestável, não admitindo prova em sentido contrário. Haja vista o critério da presunção relativa do registro ser aqui adotado pela lei, vislumbrando-se com isto a admissibilidade de “prova em contrário”, que se confirmada pode ensejar alteração ou mesmo anulação do registro, justifica-se a existência do instituto da retificação do registro em nosso ordenamento jurídico.

Até agosto de 2004, quando entrou em vigor a Lei n°. 10.931, de 02 de agosto de 2004, as retificações a serem feitas no registro de imóveis praticamente ficavam restritas ao poder judiciário, excetuando-se, basicamente, a retificação por erro evidente.

Embora na visão de alguns o legislador tenha pura e simplesmente desejado elevar o status do registrador de imóveis com a Lei n°. 10.931/04, ao outorgar-lhe poderes para processar retificações que antes estavam a cargo do poder judiciário, podendo agora concluí-las sem a “necessidade” de ouvir o ministério público, por sua própria conta, entendemos que o fim almejado foi mais nobre. Pelo contrário, o ganho de prerrogativas não foi “fim”, mas sim conseqüência da lei. O legislador buscou apenas a simplificação da vida cotidiana, a desobstrução do trabalho do juiz, e quiçá, também do promotor. Paralelamente à situação caótica em que se via o judiciário, os cartórios extrajudiciais estavam a cargo de profissionais qualificados, também do direito, porém amarrados pela legislação arcaica. Por que então submeter uma questão, sem conflito aparente, para o judiciário, se o caso poderia perfeitamente se resolver extrajudicialmente? Desta indagação decorre, no nosso entender, a mudança operada pela Lei n°. 10.931/04.

 

 

 

 

2. Espécies de retificação e suas aplicações

Atualmente, as retificações do registro de imóveis bipartem-se em dois grupos, o das retificações judiciais e o das retificações administrativas, lembrando que, embora já previstas na legislação anteriormente, as retificações administrativas eram notadamente mais restritas. Retificação judicial, como se depreende do nome, é a retificação feita por ordem de um juiz, através de processo próprio. Retificação administrativa, por sua vez, é a feita por despacho do próprio registrador. As retificações judiciais podem ser contenciosas ou não contenciosas, conforme o conflito de interesses envolvido, e as retificações administrativas, também chamadas “extrajudiciais”, podem ser unilaterais, com participação unicamente do interessado, e bilaterais, quando dependem também da intervenção de terceiros. As retificações administrativas podem ser feitas ainda de ofício, diretamente pelo registrador, em caso de comprovado “erro evidente”, nas hipóteses previstas na Lei n°. 6.015/73.

Convém esclarecer que a expressão “retificação de registro”, embora assim consagrada pela doutrina, referindo-se a princípio apenas a “registro”, aplica-se também às averbações e às matrículas dos imóveis, mesmo se estas não possuírem nenhum registro ou averbação. Neste caso, tem o termo “registro”, portanto, sentido lato. A retificação, propriamente dita, é feita, contudo, por ato de averbação na matrícula, vedadas formas simplificadas como “em tempo”, “nota” ou quaisquer outros adendos.

 

2.1. Retificação judicial

 

Retificação judicial, conforme exposto acima é a decorrente de uma ordem judicial. Primeiramente o interessado constata que a informação constante do registro não exprime a verdade; querendo ver tal informação modificada, por julgá-la incorreta ou imprecisa, recorre ao poder judiciário; caso o juiz acolha a pretensão do interessado, após os devidos trâmites processuais, ordena finalmente que se proceda à retificação devida. A ordem é destinada ao registrador, que após a satisfação de eventuais exigências legais pelo interessado, deve acatá-la sem discussão de mérito.

Esta é a essência da retificação judicial, que encontra amparo notadamente na Lei n°. 6.015/73, em seu artigo 212, caput e parágrafo único. É interessante observar que a lei põe à disposição do interessado, em qualquer caso, a retificação judicial, ainda que cabível a administrativa. Também o faz para resguardar o direito de eventual terceiro prejudicado administrativamente. Muitas vezes se justifica a opção pela via judicial, ainda que facultativa, pois seu principal efeito é a coisa julgada, que confere alto grau de segurança jurídica ao registro retificado. Retificação por via administrativa, por outro lado, sempre pode sofrer um novo reexame, por processo judicial.

 

2.1.1. Retificação judicial amigável ou não contenciosa

 

Trata-se da retificação judicial sem conflito de interesses. Embora aqui não tenha muita importância a distinção entre retificação unilateral e bilateral, convém dizer que unilateral é aquela em que não há o envolvimento de terceiros além da parte interessada. A parte interessada não precisa ser necessariamente constituída por uma só pessoa, natural ou jurídica, mas pode ser composta por vários condôminos, por exemplo, sem que com isto se torne bilateral ou até mesmo “multilateral”. O interesse é único e comum, estando todos no mesmo pólo. Como exemplo, podem ser citadas as retificações de nome, ou outras da mesma espécie, feitas judicialmente. Retificação judicial amigável e bilateral, por sua vez, é a que envolve a necessidade de anuência de terceiros, como a retificação de área em que os confrontantes do imóvel a ser retificado são conhecidos, localizados e favoráveis à retificação. Colhem-se nos autos suas declarações assentindo com a retificação, e observados os demais trâmites e exigências processuais e/ou extrajudiciais cabíveis, o juiz a decreta.

Notadamente com o advento da Lei n°. 10.931/04, grande parte dos casos em que seria cabível a retificação judicial amigável pôde também ser processada por via administrativa, por não envolver conflito de interesses, conforme adiante demonstrado.

 

2.1.2. Retificação judicial contenciosa

 

Esta espécie representa a retificação judicial obrigatória, que jamais pode se processar por via administrativa. O sistema de registro de imóveis brasileiro não prevê o contencioso administrativo, como ocorre com o direito tributário, por exemplo. Neste tipo de retificação há necessariamente um conflito de interesses instalado. Uma das partes quer a retificação e a outra a repele: se para uma delas o registro se encontra preciso e regular, para outra pode se encontrar inadequado ou omisso, cabendo ao juiz determinar o correto.

Muitas vezes uma retificação administrativa pode se converter em retificação judicial. Como exemplo, pode ser citado o caso da retificação de área de que trata o art. 213, inciso II, da Lei nº. 6.015/73. A parte interessada na retificação de área a propõe ao registrador imobiliário da circunscrição do imóvel; este, por sua vez, exige, dentre outras providências, a anuência expressa de todos os confrontantes do imóvel a ser retificado; não havendo a anuência de um deles, o registrador notifica o omisso para eventual impugnação, a ser apresentada perante o registro predial. Como prevê o §6º do mesmo dispositivo, não havendo transação amigável e insistindo o notificado na manutenção da impugnação, não cabe mais ao registrador a conclusão do processo, devendo este efetuar a remessa ao juiz competente. A retificação, antes administrativa, passa, então, à esfera judicial.

 

2.2. Retificação administrativa

 

Retificação administrativa no registro de imóveis, como já exposto, é a feita por despacho do próprio registrador. Muito embora a lei não mencione expressamente que deva ser feita por meio de “processo”, ainda que administrativo, é esta a intenção do legislador. Outra não é a conclusão que se extrai de uma leitura – simples – de trecho do mencionado §6º, do artigo 213, da Lei nº. 6.015/73, in verbis: “(…) o oficial remeterá o processo (…)” (grifo nosso). Referido dispositivo, conforme visto acima, trata de hipótese de retificação, então administrativa, que ascende para a via judicial. Este processo, a que se refere o dispositivo, só pode ser, portanto, administrativo, eis que oriundo do registro imobiliário e não do judiciário, que é seu destino.

O processo administrativo de retificação, acima justificado, tem início com o requerimento do interessado. Há casos em que tal requerimento é de fácil atendimento, como no caso de correção de erro de transposição de elementos do título evidentemente demonstrado, cuja correção se faz à luz do próprio título que ensejou o registro defeituoso, bastando sua apresentação. Neste caso, o oficial defere o pedido e efetua a averbação da retificação, encerrando o procedimento. Já em casos mais complexos, sobretudo nos casos de retificação bilateral, o oficial pode ter outras incumbências, como colher assinaturas, notificar partes, realizar diligências, analisar e confrontar documentos diversos. Nestes casos, a natureza administrativa “processual” da retificação se mostra mais clara, pois são acrescidas diversas “peças” e documentos ao requerimento inicial do interessado, assumindo o “feito” aspecto muito semelhante a um “processo convencional”. Após todos os trâmites legais, previstos notadamente na Lei nº. 6.015/73, art. 213, o oficial, sendo caso de deferimento, finaliza o processo e procede à retificação proposta.

 

2.2.1. Retificação administrativa unilateral e retificação administrativa ex officio

 

Com a nova redação que lhe conferiu a Lei nº. 10.931/04, o art. 213 da Lei nº. 6.015/73, inciso I, alíneas “a”, “b”, “c”, “d”, “e”, “f” e “g”, passou a prever hipóteses em que a retificação pode ser feita pelo próprio registrador, de ofício ou a requerimento do interessado. A retificação a requerimento do interessado, prevista neste dispositivo, é sempre unilateral, por não demandar o assentimento de terceiros.

A alínea “a” refere-se ao caso de omissão ou erro cometido na transposição de qualquer elemento do título. Esta é a retificação do “erro evidente”. Erro evidente pode ser entendido como sendo aquele de pronta constatação, cuja correção não demanda análise de outros elementos que não os do título objeto do registro ou do próprio registro defeituoso e/ou sua origem. Por exemplo, constava na escritura pública “casado sob o regime da comunhão parcial de bens” e foi transposto para o registro “casado sob o regime da comunhão universal de bens”.

As alíneas “b”, “c”, “d”, “e” e “f”, do mesmo dispositivo, trazem hipóteses de retificação em que embora não tenha havido necessariamente erro anterior, há a necessidade de se adequar o registro aos novos padrões ou à realidade atual. Podem ser citadas, dentre outras, a alteração de denominação de logradouro, a atualização de confrontantes, de elementos de medida e de localização, desde que inalteradas, contudo, as medidas perimetrais, sob pena de a retificação tornar-se bilateral, demandando o assentimento dos confrontantes, conforme previsto mais adiante no mesmo art. 213.

A alínea “g”, por sua vez, trata de retificação ou inserção de dados de qualificação pessoal das partes constantes do registro. Difere da alínea “a”, dentre outros pontos, pelo fato de não derivar, necessariamente, de erro da serventia que produziu o registro, podendo também ter sido motivada por erro de terceiros. Comprova-se que determinado dado está incorreto e este é corrigido apenas juntando-se o documento oficial competente. Há ressalva na lei, contudo, para os casos de produção de outras provas além do documento oficial próprio, quando se exige solução judicial.

Nota-se que o já mencionado inciso I, deste dispositivo, simplesmente traz as duas formas de retificação por parte do registrador, “de ofício” ou “a requerimento do interessado”, sem diferenciá-las. Cumpre, então, esclarecer que estas duas situações em muito diferem. Na primeira, o registrador não é provocado pela parte, agindo de ofício. Na segunda, age somente após provocação da parte, por requerimento.

A importância desta diferenciação consiste em determinar quando o procedimento de ofício pode ser adotado sem comprometer a segurança jurídica, prestigiando a celeridade e a eficiência do serviço, e quando é recomendado que a parte requeira previamente – e expressamente – a retificação.

Considerando que não há previsão legal específica neste sentido, e levando em conta o princípio da instância, que advoga a necessidade do oficial ser “instado” para agir, percebe-se, então, a preferência da retificação motivada por requerimento da parte à retificação de ofício. Além disto, se o registrador age de ofício, a parte não é notificada que o registro foi modificado, podendo esta ser seriamente prejudicada, pois eventual certidão que tenha sido recentemente expedida, por exemplo, passa a não representar mais a verdade.

Um critério que solucionaria este impasse, seria adotar a retificação de ofício apenas para erros cuja constatação tenha sido imediata, logo após o registro. A parte já levaria a certidão do ato com a retificação efetuada, não podendo manifestar-se prejudicada. Para erros antigos, conforme exposto acima, adotar-se-ia a retificação motivada por requerimento. Convém lembrar que esta polêmica afeta somente a hipótese prevista na alínea “a”, pois não se tratando de erro evidente, não se pode falar em retificação de ofício, sob pena de estar o oficial agindo na qualidade de interessado, como se parte fosse.

 

2.2.2. Retificação administrativa bilateral

 

Bilateral, conforme consta acima, é a retificação que envolve o assentimento de terceiros. Há a parte requerente e terceiros que devem anuir, como condição sine qua non, para que a retificação seja deferida. Exemplo clássico de retificação administrativa bilateral é a retificação administrativa de área, que conquistou espaço respeitável com o advento de novas exigências relativas a imóveis rurais, como o geo-referenciamento.

O art. 213, II, e §§ 1 º a 10, da Lei nº. 6.015/73, trata da retificação acima aludida. Cabe ao interessado apresentar requerimento, perante o registro imobiliário competente, acompanhado de planta e memorial descritivo assinado por profissional habilitado pelo CREA, bem como pelos confrontantes do imóvel, juntamente com o respectivo título de propriedade. A indicação dos confrontantes anuentes é de responsabilidade do profissional técnico elaborador do mapa e do memorial descritivo.

Caso falte na documentação a assinatura de algum confrontante, o oficial deve notificá-lo para se manifestar. Havendo anuência, ou não havendo impugnação no prazo legal – hipótese em que se presume a anuência – a retificação é deferida e averbada na matrícula. Havendo impugnação, sem composição amigável, cessa a via administrativa e o oficial remete o processo ao juiz competente, que pode ainda, se a controvérsia versar sobre direito de propriedade, remeter o interessado para as vias ordinárias.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

3. Conclusão

 

Constituiu o objeto de estudo deste trabalho a análise das diversas formas de retificação existentes no ordenamento jurídico pátrio, concluindo-se que cada uma tem a sua específica função. A expansão da retificação administrativa, pós Lei nº. 10.931/04, representou um verdadeiro avanço no registro imobiliário, por conferir celeridade e praticidade a processos antes longos e laboriosos na via judicial. A retificação judicial, ao contrário do que se poderia deduzir, não perdeu espaço com a ascensão da retificação administrativa, ou pelo menos não de forma significativa. Isto se verificou devido ao alto grau de segurança jurídica proporcionado pela retificação judicial, que tem como principal efeito a coisa julgada, ausente na retificação administrativa. Caberia, então, a reflexão sobre a situação do lugar comum em que a celeridade e a praticidade, exigidas pelo mundo moderno, podem coexistir com a segurança jurídica necessária à paz social.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de imóveis. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada (Lei n. 8.935/94). 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

DIP, Ricardo. Registro de imóveis: (vários estudos). Porto Alegre: IRIB: Sergio Antonio Fabris Ed., 2005.

MELO JR., Regnoberto Marques de. Lei de registros públicos comentada. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003.

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