Mais uma tentativa de golpe contra o federalismo brasileiro – CNJ quer usurpar poder das corregedorias estaduais

Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, professor de Direito Processual Civil do IUNIB, doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da Comissão designada pelo Senado Federal para elaboração do Novo CPC.

1. A teoria das molas e a atuação do CNJ

Se a atuação das instituições republicanas pudesse ser explicada mediante elementos de outras ciências, considerando que o conhecimento não é estanque, certamente a atuação do Conselho Nacional de Justiça se encaixaria perfeitamente na teoria das molas. Na física clássica, uma mola consiste em um dispositivo que acumula energia potencial, esticando as ligações entre os átomos de um material elástico. As molas, quando comprimidas, armazenam energia, e, após liberadas, esticam-se proporcionalmente à compreensão sofrida. No entanto, segundo a Lei de Hooke, se a mola se estende para além da sua capacidade elástica, tende a sofrer deformações permanentes, pelo rompimento de suas ligações internas.

Esse raciocínio, transposto para a análise do CNJ, permite visualizar que o órgão, quando criado, representava o apelo de entidades da sociedade civil e da comunidade jurídica pela reforma do Judiciário, porque se compreendeu que o acesso à justiça e a efetividade da prestação jurisdicional somente se concretizariam se o próprio Poder Judiciário, quanto à sua dinâmica interna, estivesse preparado, em termos de recursos materiais, financeiros e humanos, para o desempenho de uma prestação jurisdicional de melhor qualidade. Assim, criado o CNJ pela Emenda Constitucional n. 45/05, os anseios subjacentes à sua estruturação serviram de energia potencial armazenada para o seu impulsionamento. Como uma mola liberada, após passar por um longo período de pressão, o CNJ lançou-se a racionalizar a atuação judiciária brasileira, por meio de atividades de planejamento de recursos humanos, administrativos, logísticos e financeiros. Além disso, realizou importantes intervenções em termos fiscalizatórios, de ouvidoria, de arrecadação de informações quanto à feição, em números, da justiça brasileira, e de proposição de providências imprescindíveis ao seu desenvolvimento, tudo no compasso de uma política pública maior de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional.

Todavia, o CNJ tem pretendido, apesar da essencialidade das funções que atualmente desempenha, abarcar atribuições que não lhe foram originariamente consagradas, levando ao limite à sua capacidade elástica. A continuar nesse movimento de arrecadação de competências, tal como as molas que se esticam para além de sua compostura natural, o Conselho sofrerá deformações permanentes, pelo rompimento do arcabouço normativo que lhe serve de fundamento, e, o que é pior, pela perda da capacidade de desempenho das atribuições para as quais foi originalmente criado: operacionalização do planejamento estratégico do judiciário, no sentido de modernizá-lo, de prepará-lo para o futuro.

A principal faceta do limite elástico do CNJ tem se revelado, a par de outros excessos devidamente controlados pelo STF, na tentativa de assunção de competência disciplinar própria e autônoma, em detrimento das corregedorias locais, no que tange ao processamento e imposição de sanções disciplinares contra magistrados. Essa pretensão de autonomia ilimitada é fruto de um movimento orquestrado a favor da concessão de supercompetências ao CNJ, que, a partir de uma leitura muitas vezes literal e simplista do art. 103-B, §4º, III, da CF, intenciona conferir-lhe poderes disciplinares desproporcionais, que transvazam a moldura normativa do órgão e desconsideram a sua capacidade fática para suprir essa descomunal demanda.

Essa orquestração pró-ampliação das competências do CNJ[1], consciente ou inconscientemente, conduzirá, se levada a cabo, ao desequilíbrio do sistema, que se baseia em uma tênue tensão dialética entre os poderes e que se firma sobre o primado do pacto federativo, representativo da co-existência harmônica entre os entes locais e os centrais. Para que se reduzam os conflitos, torna-se impositivo o respeito, pelo ente central, dos poderes outorgados aos entes locais, porque, de outro modo, a assunção desmedida de poderes pelo ente central – no caso o CNJ – conduziria à inanição e ao perecimento dessa parcela de poder conferida aos entes locais.

Como conseqüência, num movimento circular, debilitadas as corregedorias locais, seja pela inescrupulosa contestação de sua legitimidade, seja pela retirada vertical de suas atribuições, restaria ao CNJ o dever de exercer o poder disciplinar, originariamente, sobre todos os membros do Poder Judiciário, carga de trabalho incompatível com as missões a que o órgão é chamado a desempenhar. Segundo dados da Corregedoria Nacional de Justiça, “de 2008 para 2009, o número de processos autuados no CNJ dobrou, passando de 4.650 para 9.077”, sendo que “as demandas da corregedoria correspondem a 60% do total de processos que ingressaram no Conselho”[2]. Entre setembro de 2008 e agosto de 2010, o numero de reclamações disciplinares em trâmite alcançavam o expressivo patamar de 3.148 procedimentos.

A prevalecer, pois, a tese da competência autônoma do CNJ em relação às demais corregedorias, é possível prever o congestionamento do próprio órgão, conducente a sua deformação como gestor da política pública de aprimoramento do judiciário, convertendo-se em supercorregedoria, sem cogitar, nesse movimento de usurpação de competências, da afronta à autonomia dos Tribunais e ao princípio federativo. O exercício do poder disciplinar, projetado para ser desempenhado de modo ancilar, será convertido em principal atribuição do Conselho, sobrecarregando-o.

Comunga desse entendimento também o Presidente do CNJ, Min. Cezar Peluso, que em entrevista a site jurídico asseverou: “Eu, particularmente, acho que as Corregedorias têm que ser prestigiadas e exigidas, sob pena de ficarem inutilizadas e sobrecarregarem o Conselho. Quando se sustenta que a Corregedoria não precisa agir, porque o Conselho pode agir imediatamente, as Corregedorias vão atrofiar-se e não funcionar, o que gera conseqüências graves. O CNJ deve ter o poder de atuar diretamente em várias hipóteses. Por exemplo, quando a Corregedoria local toma conhecimento e fica omissa, não faz nada. Ou então quando, embora tome conhecimento das faltas, aja facciosamente ou de algum modo deixe de apurar como deve. Também nos casos em que houver suspeita grave de que a Corregedoria ou os órgãos locais não sejam isentos para julgar, ou ainda quando a própria Corregedoria local possa estar envolvida nas acusações. Aí o CNJ tem que avocar o caso, e atuar em primeira mão. Mas o princípio deve ser o de obrigar as Corregedorias locais a exercer o seu papel legal de apurar as falhas e punir. Temos que obrigar os magistrados que são titulares de corregedoria, de poderes correcionais, a cumprir o seu dever. E é função do CNJ, estimular o cumprimento dos deveres dos magistrados, sob pena de os próprios corregedores serem investigados e punidos em face de suas responsabilidades legais. Essa é a grande pedagogia do princípio que sustento[3].

Pretendendo o CNJ uma atuação excessivamente elástica, para além de suas atribuições originais, talvez fosse o caso de novamente convocar o poder legislativo, agora para trazer o órgão a um nível de equilíbrio, que, conquanto dinâmico, eis que não se quer o engessamento do Conselho, manteria íntegros os objetivos e metas para o qual foi criado, impedindo eventuais desvios de rota.

2. Necessidade de interpretação não meramente literal para se desvendar o sentido profundo e interno da Constituição

Os articulistas que apóiam o movimento de transformação do CNJ em uma supercorregedoria baseiam-se, em sua maioria, em interpretação meramente literal do art. 103-B, §4º, inciso III, da CF, segundo o qual o CNJ tem competência para “receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário (…) sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa”.

A leitura do dispositivo constitucional, isoladamente e por seus termos literais, de fato, poderia conduzir a se afirmar que o CNJ também dispõe de competência autônoma e originária para instaurar procedimento administrativo disciplinar e aplicar penalidades a magistrados, independentemente da postura das corregedorias locais. Tratar-se-ia de competência concorrente e não subsidiária.

Como defensor dessa corrente, cite-se o Secretário-Geral do Conselho Federal da OAB, Marcos Vinícius Furtado Coelho, segundo o qual “a questão fulcral [quanto aos poderes disciplinares do CNJ] se encontra na melhor interpretação da expressão ‘sem prejuízo da competência’ das corregedorias estaduais, decorrendo daí competência subsidiária ou concorrente. Literalmente, tal significa que não exime e não obsta. Em outras palavras, adiciona-se e não se exclui. As competências assim previstas coexistem de modo concorrente e não subsidiário”[4].

Essa tese, no entanto, não convence. A tarefa hermenêutica constitucional não pode se confundir com a interpretação do texto infraconstitucional. Não se interpreta a Constituição como se interpreta uma lei. O texto constitucional é necessariamente mais denso e rigorosamente mais dinâmico, porque nele orbitam uma profusão de valores a que a interpretação simplesmente literal desconsidera. Essa técnica, per se, não permite a ponderação de todos os valores que reverberam no texto constitucional, os quais têm de ser apreendidos em uma visão totalizante e includente, com vistas à unicidade e organicidade do conjunto normativo fundamental. A interpretação literal pode ser utilizada, e isso não se discute, em conjunto com outros mecanismos, mas não isoladamente. Nas palavras de José Afonso da Silva, “a tarefa da hermenêutica constitucional consiste em desvendar o sentido mais profundo da Constituição pela captação de seu significado interno, da relação de suas partes entre si e, mais latamente, de sua relação com o espírito da época – ou seja, a compreensão histórica de seu conteúdo, sua compreensão gramatical na sua relação com a linguagem e sua compreensão espiritual na sua relação com a visão total da época”[5].

Exatamente por isso, o Supremo Tribunal Federal tem lançado mão, como técnica interpretativa constitucional, a par dos métodos clássicos, dos chamados princípios instrumentais[6], que constituem metanormas, problematizantes do exercício interpretativo e que permitem apreender e correlacionar os diversos componentes axiológicos da Constituição.

Faz-se necessário, dessa forma, avançar sobre uma leitura simplista a açodada do art. 103-B, §4º, III, trazendo à análise todos os valores em conflito e, pelo respectivo sopesamento, encontrar, de fato, a norma que pode ser extraída do texto, eis que texto e norma não se confundem, conquanto a interpretação literal tenda a tratar de forma equivalente e amarrada esses dois elementos[7].

De antemão, adiante-se que giram em torno do tema da assunção de competência disciplinar originária e autônoma pelo CNJ, além do próprio art. 103-B, §4º, III, da CF, o princípio constitucional da autonomia dos tribunais e autogoverno da magistratura (art. 96, CF), o princípio do pacto federativo (art. 25 e 125, CF), o princípio do juiz natural (art. 5º, LIV e LV, CF) e o princípio da isonomia (art. 5º, II e art. 37, caput, CF). Todos eles, mediante processos de coordenação e combinação, têm de ser harmonizados, mesmo que isso implique redução proporcional em seus âmbitos de aplicação – e não uma exclusão completa –, de modo que, ao final, sejam aliviadas as tensões porventura existentes entre os valores em conflito.

 

3. A Autonomia dos Tribunais: reflexo do federalismo plural brasileiro

O Brasil é um universo! E o federalismo contribui para a manutenção dessa pluralidade, porquanto permite a preservação, pelos Estados federados, de parcela da autonomia política, que se revela nas faculdades de auto-organização e normatização própria, autogoverno e auto-administração. Conquanto limitada, a autonomia política dos entes federativos é que lhes confere a capacidade de manter viva a idéia de pluralismo, de manter pulsante a diversidade. No lado oposto da moeda, o centralismo desmedido conduz à planificação, porque desconsidera sutilezas culturais e contextuais que os entes locais melhor apreendem e melhor solucionam. O centralismo descontrolado abre espaço para a ascensão de um indesejável unitarismo, que, totalizante, desconsidera as diferenças.

Aliás, quando o CNJ pretendeu a unificação do horário de atendimento ao público em todos os tribunais do país, restou evidente que não se levou em conta a diversidade cultural e climática do Brasil, e nem mesmo se fez uma análise do impacto orçamentário da medida, como se as palavras lançados no texto de uma resolução, mais por sua pirotecnia, menos por sua racionalidade, pudessem alterar a natureza das coisas. O pluralismo brasileiro não pode ser desconsiderado pelo CNJ, sob pena de se anularem as características múltiplas que compõem a tessitura da nação, as quais requerem adaptações inerentes às especificidades regionais. Justamente contra essa planificação impraticável é que o Min. Fux, na ADI n. 4558, sem adiantar seu voto, mas embasado em ofícios de Presidentes de diversos Tribunais, que informaram a inviabilidade da implementação imediata de horário uniforme de atendimento ao público e do elevado aumento de despesas a que essa medida acarretaria, concedeu medida cautelar para suspender os efeitos da Resolução n. 130 do Conselho Nacional de Justiça[8].

Quanto à competência originária e autônoma do CNJ para instaurar procedimento administrativo contra magistrados, é de se bradar, uma vez mais, o respeito à autonomia dos Tribunais, reflexo das faculdades de auto-organização, autogoverno e auto-administração inerentes aos entes federativos.

A coerência do sistema requer a demarcação da atuação de cada ente, permitindo-se a convivência não conflituosa entre os órgãos centrais e locais. Desta sorte, mesmo que o Poder Judiciário tenha caráter nacional, há que se reconhecer que o modelo jurídico brasileiro, a teor de sua organização constitucional, consagra esferas autônomas e indevassáveis de poder conferidas aos Tribunais, as quais não podem ser suprimidas sem que, com isso, se conduza à grave afronta à Constituição da República.

Relembre-se que na ADI n. 3367, na qual se julgou constitucionalidade a criação do CNJ, o Relator, Min. Cezar Peluso, asseverou expressamente que o princípio federativo encontra referência na feição orgânica do Judiciário. Ao dispor sobre a unidade do Poder Judiciário, ressalvou que “não se quer com isso afirmar que o princípio federativo não tenha repercussão na fisionomia constitucional do Judiciário. Sua consideração mais evidente parece estar à raiz da norma que delega aos Estados-membros competência exclusiva para organizar sua Justiça, responsável pelo julgamento das causas respeitantes a cada unidade federada (art. 125). Toca-lhes, assim, definir a competência residual de seus tribunais, distribuí-las entre os vários órgãos de grau inferior, bem como administrá-la na forma prevista do art. 96, coisa que revela que a estrutura judiciária tem um dos braços situados nas justiças estaduais[9].

Desse modo, o poder de autogoverno dos Tribunais (art. 96, CF) não pode ser esvaziado, mesmo porque, o próprio art. 103-B, §4º, III, afirma que pode o CNJ conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, “sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais”. A composição destas duas atribuições, presentes no dispositivo, não pode levar a se afirmar, sem uma perquirição mais profunda, a existência pura e simples de competência concorrente. Tanto a validade da afirmação em si, quanto as suas conseqüências merecem racionalização adequada, exatamente porque o concerto dos valores presentes no texto constitucional não pode ser reduzido à superficialidade.

Aliás, o raciocínio dos defensores do exercício autônomo e originário da competência disciplinar pelo CNJ se baseia, em grande parte, em questões de índole midiática, como se o Conselho pudesse resolver todos os problemas judiciários nacionais, expungindo-o de todas as suas mazelas[10]. A questão beira a assunção de um dogma de fé: se o CNJ exercer o poder censório sobre todos os magistrados do país, o problema do desvio dos deveres funcionais pelos magistrados será imediatamente solucionado. Estranhamente supõe-se que uma atuação isolada e centralizante seria mais eficaz do que o trabalho coordenado e descentralizado. A se continuar nessa linha, como conseqüência, a par da análise dos valores constitucionais em jogo, o CNJ será reduzido a um órgão burocrático e ineficiente. Muito melhor seria estimular a atuação das corregedorias, e fiscalizá-las de perto. É incongruente, afinal, asseverar que o CNJ teria competência para julgar todos os processos disciplinares contra magistrados, mas não seria capaz de estabelecer uma relação estreita com as corregedorias locais, de sorte a obstar sejam os processos manipulados a favor da impunidade. Prefere-se adotar uma posição de isolamento do que de coordenação.

Em audiência pública realizada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, o Min. Gilmar Mendes foi incisivo quanto a esse ponto:

(…) se nós continuarmos nesse ritmo, se nós continuarmos a pautar o trabalho do Conselho por esta filosofia, nós vamos fazer inveja ao centralismo democrático da antiga União Soviética. Nós vamos assumir um papel para o qual nós não estamos preparados. Pensando neste universo que é o Brasil. Com tantas questões, com milhões de processos tramitando em todas as varas, imaginarmos que cada reclamação eventualmente feita contra os aspectos mais comezinhos relativos aos processos ou às decisões administrativas desses juízes elas venham a desaguar no Supremo, no Conselho. Nós vamos ter alguma insatisfação agora não com a justiça, mas com o funcionamento do Conselho. A rigor, é a funcionabilidade do Conselho que pode estar em jogo neste modelo. Daí eu vinha preconizando, desde então, a necessidade de que nós trabalhemos essa idéia da subsidiariedade (…). Claro, os órgãos correcionais, os órgãos administrativos dos tribunais devem cumprir a sua missão. Se eles falharem, se eles não derem resposta, sim, cabe ao Conselho fazer a intervenção, cabe ao Conselho regular determinadas atividades, fazer o planejamento dessas atividades, acompanhar a efetividade da prestação jurisdicional. Mas não cabe ao Conselho dar resposta para cada angústia tópica que mora em cada processo. É preciso, portanto que nós estejamos atentos, de resto eu estou a falar de algo que não é nenhuma novidade, o princípio da subsidiariedade (…) já se fazia presente no pensamento de Aristóteles. Aparece em São Tomas de Aquino (…), é o princípio básico da comunidade européia hoje, é o princípio estruturante da comunidade européia. É um pensamento central da idéia federativa. Para nós respeitarmos, inclusive, a autonomia dos tribunais que a Constituição quer preservar, é preciso que nós tenhamos essa visão. Acredito, Sr. Presidente, que essa deve ser a tônica do Conselho. E eu digo com esta ênfase porque nós todos estamos aprendendo. A própria feitura da Emenda Constitucional é uma obra de engenharia institucional[11].

Em uma análise hermenêutico-constitucional, como o princípio da autonomia tem de ser preservado, assim como a competência do CNJ e o próprio pacto federativo, resta evidente que a regra da subsidiariedade consegue, no contexto dos princípios da unidade e da concordância prática, harmonizá-los equitativamente. Se esses três valores têm de ser aplicados, faz-se imperioso reduzir proporcionalmente seus âmbitos de incidência até que se alcance uma relação de equilíbrio.

De acordo com a regra da subsidiariedade, o principio federativo e a autonomia dos Tribunais têm de ceder quando servirem de anteparo a responsabilização dos juízes, diante de situações de inércia, simulação, procrastinação ou incapacidade prática das corregedorias locais, abrindo espaço para a autuação originária do CNJ. Isso permite ver que a competência disciplinar não lhe é retirada totalmente. O CNJ preservaria, assim, a competência outorgada pelo texto constitucional, manejável, no entanto, em situações excepcionais.

O dinamismo do federalismo mantém-se preservado pela aplicação do princípio da subsidiariedade, porque “leva à correlação entre integração e autonomia, criando uma espécie de subsidiariedade de base federativa, capaz de assegurar paz e liberdade dos diversos Estados que fazem parte do processo aproximativo geral, com preservação das potencialidades individuais”[12].

Esse é o entendimento que o Min. Celso de Mello tem defendido arduamente em diversas liminares concedidas em mandados de segurança impetrados perante o Supremo Tribunal Federal[13]. Segundo afirma, o princípio da subsidiariedade legitima a atuação complementar do CNJ, conformando-a com a autonomia institucional dos Tribunais. Pela importância, vejamos um trecho da decisão:

Não obstante a dimensão nacional em que se projeta o modelo judiciário vigente em nosso País, não se pode deixar de reconhecer que os corpos judiciários locais, por qualificarem-se como coletividades autônomas institucionalizadas, possuem um núcleo de autogoverno que lhes é próprio e que, por isso mesmo, constitui expressão de legítima autonomia que deve ser ordinariamente preservada, porque, ainda que admissível, é sempre extraordinária a possibilidade de interferência, neles, de organismos posicionados na estrutura central do Poder Judiciário nacional.

É por tal motivo que se pode afirmar que o postulado da subsidiariedade representa, nesse contexto, um fator de harmonização e de equilíbrio entre situações que, por exprimirem estados de polaridade conflitante (pretensão de autonomia em contraste com tendência centralizadora), poderão dar causa a grave tensão dialética, tão desgastante quão igualmente lesiva para os sujeitos e órgãos em relação de frontal antagonismo.

Em uma palavra: a subsidiariedade, enquanto síntese de um processo dialético representado por diferenças e tensões existentes entre elementos contrastantes, constituiria, sob tal perspectiva, cláusula imanente ao próprio modelo constitucional positivado em nosso sistema normativo, apta a propiciar solução de harmonioso convívio entre o autogoverno da Magistratura e o poder de controle e fiscalização outorgado ao Conselho Nacional de Justiça.

Disso resulta que o exercício, pelo Conselho Nacional de Justiça, da competência disciplinar que lhe foi atribuída dependeria, para legitimar-se, da estrita observância do postulado da subsidiariedade, de tal modo que a atuação desse órgão devesse sempre supor, dentre outras situações anômalas, (a) a inércia dos Tribunais na adoção de medidas de índole administrativo-disciplinar, (b) a simulação investigatória, (c) a indevida procrastinação na prática dos atos de fiscalização e controle ou (d) a incapacidade de promover, com independência, procedimentos administrativos destinados a tornar efetiva a responsabilidade funcional dos magistrados.

Isso significaria que o desempenho da atividade fiscalizadora (e eventualmente punitiva) do Conselho Nacional de Justiça deveria ocorrer somente nos casos em que os Tribunais – havendo tido a possibilidade de exercerem, eles próprios, a competência disciplinar e correcional de que se acham ordinariamente investidos – deixassem de fazê-lo (inércia) ou pretextassem fazê-lo (simulação) ou demonstrassem incapacidade de fazê-lo (falta de independência) ou, ainda, dentre outros comportamentos evasivos, protelassem, sem justa causa, o seu exercício (procrastinação indevida).

Dessa maneira, a incidência do postulado da subsidiariedade, como requisito legitimador da prática concreta, pelo Conselho Nacional de Justiça, de uma competência complementar em matéria correcional, disciplinar e/ou administrativa, não só harmonizaria o exercício dessa jurisdição censória com o princípio da autonomia institucional dos Tribunais, como conferiria, também, maior coeficiente de legitimidade jurídica à atuação desse órgão estatal, propiciando-se, desse modo, nos termos da abordagem ora preconizada, a análise do tema sob a perspectiva dos múltiplos valores constitucionais envolvidos[14].

Equivalente solução foi encontrada pelo STJ, quando da definição dos limites do incidente de deslocamento de competência previsto no art. 109, §5º da CF. Constatou-se que a retirada de competência da justiça estadual reputar-se-ia válida tão-somente diante da inércia dos Estados-membros em promover a persecução penal, o que legitimaria a transferência dessa competência à Justiça Federal. Conforme se consignou, “o deslocamento de competência (…) deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal.”[15].

Como o objetivo desse trabalho consiste em desvendar um sentido mais profundo da Constituição, para além de uma análise meramente literal e superficial de seu texto, torna-se possível vislumbrar, pela conjugação dos valores autonomia dos Tribunais, federalismo e competência complementar do CNJ, que a regra da subsidiariedade consegue melhor conjugá-los e ordená-los, sem excluir qualquer deles. Ela também tem conseqüências práticas desejáveis, porque, de um lado, não induz o enfraquecimento e inanição das corregedorias locais e, de outro, não assoberba o Conselho com carga de trabalho superior à sua capacidade técnica, permitindo possa ele exercer com igual responsabilidade e qualidade todos os outros misteres que a Constituição lhe atribuiu.

            Mas não só esses valores exigem a aplicação da regra de subsidiariedade, porque também o princípio da isonomia e o princípio do juiz natural reclamam a sua incidência, para que não restem vulnerados. A seguir, veremos como o objeto deste estudo – competência concorrente ou subsidiária – sofre influências desses princípios.

4. A competência originária ilimitada e a transformação do CNJ em juízo de exceção: aleatoriedade ou arbitrariedade na escolha dos processos e dos processados?

A garantia do juiz natural, defluente do princípio do devido processo legal (due process of Law), revela-se como vinculativa de uma ordem taxativa de competência, excluindo qualquer arbitrariedade ou discricionariedade na condução e julgamento dos procedimentos censórios contra magistrados, porque impõe o máximo respeito à regra de imparcialidade, seja em seu plano subjetivo (imparcialidade do julgador), seja em sua ótica objetiva (fixação predeterminada de competência).

No processo administrativo, o princípio do juízo natural tem plena aplicabilidade, porque, ontologicamente, a sanção penal não difere da sanção administrativa disciplinar, variando apenas em gradação. Não por outro motivo, a Constituição garante aos litigantes em processo administrativo o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV, CF).

Essas garantias pressupõem, como inerência, a tutela da imparcialidade. A atribuição de competência disciplinar originária ao CNJ, nesse sentido, malfere o princípio do juízo natural, por agravamento da regra de imparcialidade, não pela criação de um juízo de exceção, mas pela aleatoriedade ou arbitrariedade na escolha dos processos a serem decididos pelo Conselho. De acordo com informações da Corregedoria Nacional de Justiça, do total de processos propostos no órgão, 90% são remetidos às corregedorias locais, permanecendo 10% para serem julgados no próprio CNJ[16]. Não se explicitam, no entanto, com alicerce em regras claras e previamente fixadas, os fundamentos da escolha desses processos que são julgados pelo Conselho, o que pode abrir espaço a se lançarem dúvidas sobre a legitimidade dos próprios julgamentos. Por raciocínio lógico-dedutivo, tomando por base os dados da Corregedoria Nacional, pode-se chegar à conclusão de que o exercício da competência disciplinar autônoma pelo CNJ tem por premissa a aleatoriedade, ou, o que seria gravíssimo, toma em consideração as figuras envolvidas no processo, a denotar, em ambos os casos, violação à regra de imparcialidade.

A atribuição de competência disciplinar autônoma ao CNJ deve compreender, também, um tratamento adequado ao princípio do juiz natural e ao princípio da isonomia, porque a interpretação constitucional exige uma visão totalizante e includente. Assim, se tradicionalmente o trâmite dos procedimentos administrativos disciplinares se dá perante os Tribunais, o deslocamento dessa competência para outro órgão, ainda que central no sistema, tem de se pautar por uma racionalização anterior que o justifique e legitime. E essa racionalização tem de ser explícita, não casuística, para não bater de frente com o princípio da igualdade. Quer-se dizer que, se a autoridade competente para acusação, instrução e decisão final do processo administrativo deve vir estabelecida antecipadamente, igualmente previamente fixado deve ser o processo por meio do qual se dá o deslocamento da competência para órgão diverso do originário.

De outro modo, o princípio da isonomia restaria excluído do processo interpretativo. Isso permitiria, conseqüentemente, que determinados magistrados fossem julgados pelo respectivo Tribunal, enquanto outros, por critérios arbitrários, fossem levados a julgamento perante o CNJ, frustrando, inclusive, direito a eventual recurso administrativo – princípio ao duplo grau de jurisdição.

A isonomia condiz com o juízo natural quando veda a escolha específica de julgador para determinado processo ou considerando-se o sujeito nele envolvido. De nada valeria tutelar-se a ampla defesa e o contraditório no procedimento administrativo disciplinar se não se garantisse a incidência do postulado do juiz natural, porque, se assim não ocorresse, poder-se-ia escolher, arbitrariamente, um órgão predeterminado a condenar ou absolver. A fixação da competência disciplinar não permite que se leve em consideração, personalisticamente, o sujeito que participa do processo, porque, se assim ocorrer, inalcançadas estarão as finalidades a que visa proteger o princípio da igualdade: garantia individual contra perseguições e vedação ao favoritismo.

Para solucionar esse impasse, de duas uma: ou (i) o CNJ assume o poder censório sobre todos os magistrados do país, o que conduziria a uma descomunal sobrecarga de trabalho e à incompatibilidade com a autonomia dos Tribunais e com o princípio federativo, como visto anteriormente, ou (ii) preservando-se a isonomia entre os magistrados brasileiros, reconhece a prevalência do exercício da função disciplinar pelos Tribunais. A existência dessa diversidade de tratamentos é que não pode ser admitida, por dissonância dos valores fundamentais albergados no sistema.

Mais uma vez, pelo sopesamento e concordância dos preceitos constitucionais em jogo, deve-se prestar reverência ao princípio da subsidiariedade, porque compatibilizante de uma atuação complementar do CNJ com o princípio da igualdade e com o princípio do juízo natural, tudo a favorecer a incidência plena da garantia abrangente do devido processo legal. Acolhe, ainda, os outros valores que orbitam em torno da questão – autonomia dos Tribunais e princípio federativo.

5. Conclusão: a subsidiariedade como mecanismo integrador dos elementos axiológicos da CF

A força normativa da Constituição não se compraz com interpretações divergentes de soluções densificadoras de suas normas e que não as tornem mais eficazes e permanentes. Também o desejo de unidade contrapõe-se a construções tendentes a gerar conflitos, antagonismos e antinomias entre as normas constitucionais. Quer-se dizer, com isso, que a assunção de determinado tema como discurso de palanque, transformado, pela força da repetição, em mantra, esconde, quase sempre, uma ausência de racionalidade constitucional, que desconsidera os valores em conflito e ignora as conseqüências das posturas adotadas. Se à mídia interessa a balbúrdia, ao interprete constitucional deve importar a conjugação dos elementos axiológicos, principalmente os não imediatamente palpáveis, os latentes, os que compõem o espírito e estruturam a ossatura da Constituição.

A aplicação da regra da subsidiariedade, desse modo, melhor compreende e melhor conjuga todos os valores que circundam o tema da competência disciplinar do Conselho Nacional de Justiça. Pela sua aplicação, nenhum deles é excluído, merecendo todos proporcional incidência.

Dizer ser a competência do CNJ subsidiária em nada reduz ou amesquinha a sua importância. Pelo contrário, essa compreensão lhe confere legitimidade e racionalidade, em arquitetura compatível com o complexo conjunto normativo-constitucional brasileiro.

O valor das funções desempenhadas pelo CNJ é inquestionável, mas se deve obstar que ele seja deformado pela aplicação, por atores sociais descomprometidos com soluções de continuidade e com a preservação da lei fundamental, de uma força excessiva e desproporcional à sua própria natureza. Como as molas a que se estuda na física, deve-se impedir que o CNJ, em desvio de rota, se estenda para além de sua capacidade elástica.

E se próprio Conselho não reconhecer o início do processo de ruptura de sua congruência, aí sim, concorrentemente, caberia ao Supremo Tribunal Federal, pela autêntica interpretação do texto fundamental, e ao Congresso Nacional, em defesa dos ideais originais que impulsionaram a criação do órgão, recolocá-lo em posição de equilíbrio.


[1] Basta ver os artigos que recentemente têm sido publicados na imprensa: CNJ – um conselho que incomoda muita gente, por Maria Thereza Sadeck, In Folha de São Paulo, 28/08/2011; A importância do CNJ, por Ives Gandra da Silva Martins, In Folha de São Paulo, 02/09/2011; CNJ não é subsidiário em relação a outras corregedorias, por Marcus Vinícius Furtado Coelho, In Consultor Jurídico <www.conjur.com.br>, acesso em 11/09/2011.

[2] Balanço da Gestão do Min. Gilson Dipp. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/relatorios/relatorios-anuais-da-corregedoria>, acesso em 11/09/2011.

[3] Entrevista publicada no site Conjur. Disponível em: << http://www.conjur.com.br/2011-jan-09/entrevista-cezar-peluso-presidente-supremo-tribunal-federal-cnj>>.

[4] CNJ não é subsidiário em relação a outras corregedorias, por Marcus Vinícius Furtado Coelho, In Consultor Jurídico <www.conjur.com.br>, acesso em 11/09/2011.

[5] SILVA, José Afonso da – Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 15

[6] v.g princípio da unidade, princípio do efeito integrador, princípio da concordância prática, princípio da convivência das liberdades públicas, princípio da força normativa, princípio da conformidade funcional, princípio da máxima efetividade e princípio da proporcionalidade.

[7] Segundo Canotilho, “o recurso ao texto para se averiguar o conteúdo semântico da norma constitucional não significa a identificação ente texto e norma. Isto é assim mesmo em termos lingüísticos: o texto da norma é o sinal lingüístico; a norma é o que se veicula ou o que designa”. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1091.

[8] ADI 4598 MC, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 30/06/2011, DJe-147 divulgado em 01/08/2011, publicado em 02/08/2011.

[9] STF, ADI n. 3367, Re. Min. Cezar Peluso, DJ 22/09/2006.

[10] Cite-se, como exemplo, trecho do artigo de Maria Tereza Sadek: “Perplexos com a faxina levada a efeito pela Corregedoria Nacional de Justiça, os interesses contrariados reabrem a discussão do tema, tentando a todo o custo fazer prevalecer o entendimento de que o CNJ só pode punir juiz corrupto após o julgamento do Tribunal local. (…) A tese de que a competência do CNJ é subsidiária, e, assim, somente pode ser exercida após a constatação de que os tribunais de origem foram inertes ou parciais, interessa somente àqueles que depositam as suas fichas no jogo do tempo, da prescrição e do esquecimento. O CNJ incomoda e precisa de nossa proteção para não ser transformado em um órgão burocrático e ineficiente”.

[11] Apud STF, decisão cautelar do Min. Celso de Mello no MS n. 28.743/DF.

[12] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 46.

[13] STF: MS 28.801-MC, Rel. Min. Celso de Mello; MS 28.784-MC, Rel. Min. Celso de Mello; MS 28.743-MC, Rel. Min. Celso de Mello; MS 28.712-MC, Rel. Min. Celso de Mello; MS 29.465-MC, Rel. Min. Celso de Mello; MS 28.799-MC, Rel. Min. Celso de Mello.

[14] STF, MS 28.801, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 05/08/2010 – destaques no original. 

[15] STJ, IDC n. 01/PA, Rel. Min. Arnaldo Esteves Limas, Terceira Seção, julgado em 08/06/2005, DJ 10/10/2005, p. 217.

[16] Informações prestadas perante o STF, no MS n. 30.786, Rel. Min. Joaquim Barbosa.

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