Reflexões de um juiz cristão – sobre os meandros da Comissão do Novo CPC

Por: Des. Elpídio Donizetti Nunes

Meus distintos colegas de Comissão, compartilho com vocês as reflexões por mim levadas a efeito nestes dias de recesso em que celebramos a ressurreição de Jesus Cristo depois de sua morte por crucificação. Guardadas as proporções – porque os limites das minhas preocupações se restringem a alguns remendos no CPC, enquanto a doutrina cristã operou profundas mudanças na conduta social, jurídica e moral de toda a humanidade –, tal qual Jesus, nos dias que antecederam ao seu julgamento, estou deveras preocupado com os rumos do nosso trabalho na Comissão do Novo CPC. Sabedor, de antemão, de que este texto sequer será lido por alguns, que têm ocupações profissionais ou acadêmicas mais relevantes, e que por outros será objeto do mais absoluto desprezo, neste momento me repugna a agir como o praefectus Poncio Pilatos, que, diante da sanha assassina do júri e da justificada revolta da população, simplesmente lavou as mãos. Espero ao menos contar com a misericórdia dos senhores, tal como ansiava aquele ladrão que tão somente almejava ser lembrado por Jesus quando este entrasse no seu reino. Preliminarmente – como dizemos no jargão jurídico –, pois, misericórdia é o que peço acerca da constatação que insiste em não calar.
Deixando de lado o sentimento cristão exercido nesse período de jejum, vamos ao Novo CPC. Fiquei orgulhoso ao ver o meu nome estampado no DOU como um notável. E bota notariedade nisso. Afinal, notáveis, para efeito dessa missão legiferante, são somente onze, devidamente ordenados pelo presidente do Senado Federal. A mesma quantidade de ministros do STF e de apóstolos, tirante, é claro, Judas Iscariotes, que perdeu a designação por trair Jesus, e foi se enforcar, mas nem por essa proeza – inconclusa – tornou-se notável. Igualmente orgulhoso fiquei quando nos idos de 1997 fui distinguido com uma medalha do Município de Belo Horizonte, pelos “relevantes serviços prestados à frente da Vara de Fazenda Municipal da Capital Mineira”. Naquela ocasião, por mais de quatro horas, eu, um representante do movimento cultural Afro Reggae e mais uns 150 condecorados ostentamos no peito inflado, como legítimos baiacus, a reluzente medalha.
Mas venhamos e convenhamos: para nós humanos, mortais e por isso mesmo extremamente vaidosos (ainda que essa tola frivolidade seja dissimulada em forma de humildade), notoriedade boa, que mexe com o ego, que causa dilatação do peito, é aquela que atinge a poucos. Estar entre os 150 distinguidos com uma medalha é uma coisa, estar entre os 11 é muito diferente. No meu caso, a notoriedade foi tamanha que não teve o efeito somente de inflar o meu vaidoso ego, mas também de provocar insuportável dor na articulação que conecta braço e antebraço de muitos “amigos” de jornada, inclusive de um determinado membro do Órgão Especial do TJMG. O simples fato de, diante da inexorável impossibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo, pedir o afastamento das minhas atividades de desembargador exclusivamente nos dias em que estivesse a Comissão reunida foi o bastante para um ex-professor meu, que se diz meu amigo – imagina se não fosse? – não resistir à dor que tais designações (dos amigos) provocam no cotovelo próprio. Pois esse meu ex-professor e “amigo” não se contentou somente em indeferir o pedido: evidenciou os meus minguados conhecimentos jurídicos (o que, a bem da verdade, nunca foi novidade para ninguém), pôs em dúvida a notoriedade de alguns membros da Comissão (isso já é um absurdo!), desqualificou a entidade que presido e foi por aí afora…
Passados a expiação (foram três dias de jejum, nos quais abri mão até do vinho e do uísque, minhas bebidas etílicas preferidas) e o regozijo da ressurreição, do fundo da minha alma cristã, quero confessar um fato. Creio que a excessiva dilatação pulmonar, com a conseqüente compressão do músculo do coração, acabou por comprometer a oxigenação do meu cérebro, fato que me impediu de dimensionar a gravidade da missão que nos foi imposta: “elaborar um Novo CPC para o Brasil num prazo de 180 dias”.
Hoje, superado o desejo imoderado de atrair a admiração ou mesmo aguçar o sentimento de inveja dos mais próximos, o meu grande anseio é terminar logo os trabalhos da Comissão. Afinal, as prateleiras do meu gabinete no TJMG estão abarrotadas de processos. Os advogados aguardam que eu leia – a grande vitória, segundo o mais experiente membro da Comissão – as centenas de embargos de declaração, para não mencionar as outras tantas modalidades de recursos que chegam aos borbotões a todos os tribunais deste país. Desta vez não mais foi o arroubo de passar para a história como um Frederico Marques, um Buzaid ou um Pontes de Miranda, mas sim a aflição de ver o meu trabalho como desembargador retornar à normalidade é que me levou a aderir apressadamente ao propósito de intensificar a tessitura do Novo Código. Entretanto, com a contrição da Páscoa, estou pronto para declarar os meus pecados e serenamente aguardar a penitência.
Penitencio-me agora. Reuniões em finais de semana, fora de Brasília, quiçá em lugares inadequados, em vez de salvar o projeto (que o sufrágio da maioria teima em entregar no “tempo senatorial”), pode por tudo a perder. Em outras palavras, afora a (i)legitimidade do projeto, porque realizado em dias, horários e locais inapropriados para atos do Senado da República, a emenda pode ficar muito pior que o próprio soneto.
Com essas longas justificativas (que decerto poucos terão a pachorra de ler), VOTO NÃO pelas reuniões fora de Brasília, bem como a qualquer outra reunião que não seja realizada em dia e local apropriados – leia-se: dias em que há expediente forense ou legislativo e locais que nada tenha a ver com associações de classe (ainda que de magistrados), sindicatos ou qualquer outra corporação de ofício (ainda que de advogados).
Minha refletida e por isso mesmo derradeira manifestação sobre esse tema é que devemos solicitar imediatamente a prorrogação de prazo. Caso não seja possível concluir os trabalhos a tempo de ser votado nesta legislatura – e quem tem o mínimo conhecimento do andar da carruagem do Senado, sabe que não será -, PACIÊNCIA!
Augusto Teixeira de Freitas, considerado o maior jurista das Américas pelos historiadores do Direito, foi designado para elaborar o primeiro projeto de Código Civil brasileiro em 11/1/1859. Em 1865 (passados quase sete anos), depois de escrever 4.908 artigos, chegando à conclusão de que o Código Civil deveria contemplar também o Direito Comercial (enfim, seria um Código de Direito Privado), exigiu mais prazo. O desentendimento com o governo imperial pela “demora” não subtraiu a importância do projeto, que ficou conhecido como Esboço e serviu de modelo aos códigos argentino, italiano e até ao alemão, que contemplou uma Parte Geral, tal como concebida pelo ilustre civilista baiano.
É certo que a denominada academia brasileira, com as vistas enevoadas pela presunção (que a terra lhes seja leve!), tem por hábito desprezar projetos que por questões circunstancias não se transformaram em Código, urdindo uma amnésia coletiva contra os seus autores. Essa nefasta prática – ou preguiça mental de alguns ditos juristas que ainda não lograram obter a cura da síndrome do vira-latas a que se refere Nelson Rodrigues – explica a ânsia de votar o projeto do Novo CPC a qualquer custo. Ou votamos ou seremos encarcerados e esquecidos para sempre no santo sepulcro da ignorância acadêmica, diz a nossa voz interior.
Essa aversão mórbida e irracional a ser esquecido ou ignorado (atazagorafobia) – que humano algum, exatamente por ser humano, jamais admitirá – tem conspirado contra a oportunidade que nos foi concedida de elaborar um projeto de CPC mais refletido, maduro e consistente. Um ilustre advogado mineiro disse que o prazo concedido à Comissão para a feitura do CPC é inferior ao período de gestação do ser humano. Na verdade, descontado o recesso de final de ano, as férias, os feriados, os períodos sabáticos, os dias efetivamente trabalhados no Código que almejamos dar à luz não chegam a sessenta e três, que é o tempo de gestação de uma cadela. Será que nesse tempo será possível discutir as propostas dos próprios membros da Comissão? Somente este que vos escreve, nesses dias de arrependimento e oração, produziu uma série de proposições que pretende submeter à Comissão de Notáveis, bem como a revisão de algumas outras já votadas (mas ainda não atingidas pela imutabilidade). Aqui, com os meus botões de matuto do sertão das Geraes, fico a ruminar: até o dia 27 deste mês de abril conseguiremos examinar todas as propostas colhidas em audiência pública, sem falar das que nos chegam por via terrestre, aérea, fluvial e sobretudo pela internet? Mais uma vez venhamos, combater a morosidade com tamanha pressa a todos parece a mais célere e arrematada estupidez (que Deus e também os membros da Comissão tenham pena de mim, porque não sei o que digo).
Nas palavras de Clóvis e Caio (sim, o Beviláqua e o Mário), o “Augusto” Teixeira de Freitas construiu um monumento jurídico. Decerto que não foi em vão, embora não transformado em Código. É hora de voltarmos nossos olhos para a história, de mirarmos nos grandes exemplos de genialidade (que tem por principal atributo a humildade) e baixarmos o ímpeto da ambição que ninguém jamais admitirá, porque todo “racional” tem a vã presunção de ser feito à imagem e semelhança de Deus, ou seja, de que é dotado de inteligência. É a vaidade da humildade, esta, só para que inglês a veja.
Pois é em nome desse discernimento que nos distinguem dos animais irracionais – com todo respeito e reverência a eles pela racionalidade que às vezes manifestam – que cometo a petulância de fazer um apelo aos bem intencionados colegas de Comissão: vamos trabalhar com afinco nos dias e locais apropriados; se esse esforço não for suficiente para concluir o trabalho para o qual fomos nomeados, sejamos honestos (ou melhor, humildes), vamos pedir prorrogação; se, mesmo com a prorrogação, o prazo não for suficiente para entregar o “Novo Código” a tempo de ser votado por esta legislatura (neste ano de eleição), vamos prosseguir na nossa missão, a menos que a Comissão seja extinta ou sejamos depostos; nessa última hipótese, se votarem o “Novo Código” na(s) legislatura(s) seguintes(s), tanto melhor; se não votarem, paciência, talvez não estejamos à altura da missão para a qual fomos chamados, ou, numa absurda hipótese mais consoladora, “o Brasil republicano não nos merece”, tal como “o Império não mereceu o genial Teixeira de Freitas”.
Para que não haja qualquer dúvida sobre as minhas palavras e sobretudo para que a vaidade não me compila a retroceder, eu repito em alto e bom som: VOTO NÃO às reuniões fora de Brasília; VOTO NÃO às reuniões em dias e locais inapropriados; VOTO SIM pela imediata prorrogação, pela discussão das propostas recebidas, pela amadurecida reflexão, a fim de que possamos apresentar ao país um trabalho cuja autoria não nos envergonhe e, mormente em nome de uma celeridade malsã, não faça tabula rasa de conquistas que a duras penas alcançamos com a redemocratização do Brasil.
Para encerrar essa ladainha pascal, evoco Jesus Cristo, para que, na sua absoluta sabedoria, refaça o Sermão da Montanha e nos encoraje a resistir a todas as tentações ínsitas ao ser humano e sobretudo àquelas que não raro obscurecem a capacidade de discernimento e determinação dos juristas:
“Notáveis juristas, vós sois o sal do Código que está por vir, o qual há de tornar factível um processo justo ao humilde e ao poderoso.
Mas se o sal, pela imaturidade, se tornar insípido, o que há de restaurar-lhe o sabor?
A carne sem sal ou salgada de açodo de nada prestará, a não ser para ser lançada aos urubus.
Pior que a carne em mau estado, o Código viciado pela irreflexão prestará tão somente aos gananciosos que usá-lo-ão de escudo para extorquir e humilhar o povo brasileiro;
Ainda que tardias, guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos e lembrados por eles; de outra sorte não tereis qualquer recompensa, eis que a vós restará apenas o rancor daqueles que foram prejudicados pelas vossas leis.
Não vos inquieteis, pois, com o prazo do Senado, cujo tempo necessariamente não coincide com o tempo dos juristas.
Não percais essa grande oportunidade que o presidente José Sarney vos deu de serdes justos e eternizardes a vossa obra, não vos impressioneis, pois, com a turba que se contenta com a injustiça rápida que de nada serve ao mundo civilizado.
Em nome de Deus e do Senado Federal, Eu vos dou o último conselho: chamados a fazerdes o Código da Justiça, não ajais como o juiz Pôncio Pilatos; diante do anseio da população, não vos contenteis em soltar Barrabás, lavar as mãos e entregar ao povo algo que só servirá para ser pisado por ele; fazei um Código que represente o verdadeiro ideal daqueles que têm fome e sede de justiça, porque de vós será o reino do céu.”

Belo Horizonte (MG), Domingo de Páscoa (04/04/2010).

0 respostas

Deixe uma resposta

Want to join the discussion?
Feel free to contribute!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *