A Nova Lei do Mandado de Segurança (Lei 12.016/09) em face do Princípio da Inafastabilidade do Poder Judiciário

Por: Dr. Gustavo Alexandre Magalhães & Dr. Pedro Henrique Magalhães Lima

1. Introdução. 2. Exigência legal de interposição de Recurso Administrativo (art. 5º, I, da Lei 12.016/09). 3. O Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição. 4. Inconstitucionalidade do art. 5º, I, e o Princípio da Interpretação Conforme a Constituição. 5. Referências Bibliográficas.

1. Introdução

A recente Lei do Mandado de Segurança, Lei nº 12.016 de 7 de Agosto de 2009, veio com o mérito de consolidar alguns lineamentos que a jurisprudência e as leis esparsas vinham dando ao instituto desde 1951 (data da edição da Lei1.533/51).
Os tribunais há algum tempo já decidiam, por exemplo, que não deveria haver condenação em honorários de sucumbência em ação de Mandado de Segurança, conforme súmula 512 do Supremo Tribunal Federal . O entendimento sumulado desde 1969 foi agora positivado no art. 25 da nova Lei.
Estendeu-se à autoridade coatora a possibilidade de recorrer da decisão para que se isente de responsabilidade pessoal pela prática do ato, questão que já tinha sido objeto de pronunciamento da corte especial do STJ .
Também teve lugar na nova lei (art. 25) o posicionamento do STF de que em sede de Mandado de Segurança são incabíveis Embargos Infringentes (súmula 597 do STF, editada em dezembro de 1976 ).
Por outro lado, no tocante à consolidação das regras de leis esparsas, que paulatinamente foram modificando o regramento do Mandado de Segurança, podemos citar a norma do §2º do art. 7º da Lei 12.016/09, que aglutinou em um só dispositivo as hipóteses de não cabimento de medida liminar. Trata-se, pois, de consolidação do art. 1º da Lei 2.770/56; art. 5º, parágrafo único da Lei 4.348/64; e art. 1º, §4º da Lei 5.021/66.


2. Exigência legal de interposição de Recurso Administrativo (art. 5º, I, da Lei 12.016/09)

Apesar de todos esses avanços, a Lei 12.016/09 perdeu a oportunidade de alterar a redação do artigo 5º, I , da antiga Lei 1.533/51, impondo, também no artigo 5º, I:

Art. 5o Não se concederá mandado de segurança quando se tratar:
I – de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução;

O art. 5º, I, da Lei 1.533/51, surgiu cinco anos após o início da vigência da Constituição de 1946, a despeito da norma constitucional do artigo 141, §4º, que previa não poder ser subtraído da apreciação do Poder Judiciário lesão a direito individual. Tratou-se, assim, da primeira flexibilização do princípio da inafastabilidade da jurisdição.
A Constituição de 1967, que diferentemente das demais fora outorgada pelo recente governo ditatorial, não tendo ressonância com a liberdade efetivamente exercida pelos cidadãos, consagrou no artigo 153, §4º o mesmo texto da Constituição de 1946. Contudo, em 13 de dezembro de 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5, tornou-se proibida a apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com o AI-5 e seus atos complementares, bem como os respectivos efeitos, conforme artigo 11.
Em 17 de Outubro de 1969, com a Emenda Constitucional nº 1, a apreciação dos atos do estado pelo Poder Judiciário ganhou restrição mais ampla, prevendo o artigo 181 que ficariam excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como os atos do Governo Federal, com base nos Atos Institucionais e nos Atos Complementares e seus efeitos, bem como todos os atos dos Ministros Militares e seus efeitos, quando no exercício temporário da Presidência da República.
A questão da necessidade de exaurimento da via administrativa para se ter acesso ao Judiciário ganha importância com a redação dada pela Emenda Constitucional 7/77 ao referido §4º do artigo 153. Em 1977 positivou-se a restrição expressamente na Constituição e, pela nova redação, o ingresso em juízo poderia ser condicionado ao exaurimento das vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido.
Nota-se que com o paulatino fortalecimento da ditadura militar o amplo acesso do jurisdicionado ao Poder Judiciário vai sofrendo cortes cada vez maiores, a ponto de em 1977 condicionar-se de vez a utilização do Mandado de Segurança ao prévio recurso administrativo.
A regra passou a ser a prévia utilização das vias recursais administrativas para que uma pretensão fosse apreciada pelo Judiciário, desde que não estivessem presentes os dois requisitos negativos de necessidade de prestação de garantia e que o trâmite administrativo não passasse de 180 dias. Não havendo prévio recurso à via administrativa, faltaria condição essencial de procedibilidade para a continuidade da ação judicial, que deveria ser extinta prematuramente por faltar interesse de agir.
Com o fim da ditadura militar, em 1985, e o incipiente processo de redemocratização, começaram a surgir pronunciamentos no sentido de retomar o sentido da norma que garantia o amplo acesso ao Poder Judiciário.
Essa questão se tornou muito controvertida em matéria previdenciária, o que acabou sendo consubstanciado na súmula 213 do antigo Tribunal Federal de Recursos, em maio de 1986: “O exaurimento da via administrativa não é condição para a propositura de ação de natureza previdenciária.”. O TRF da 3a Região, já após a promulgação da Constituição de 1988, também editou súmula que impunha “em matéria previdenciária, torna-se desnecessário o prévio exaurimento da via administrativa, como condição de ajuizamento da ação.”.

3. O Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição

J.J. Gomes Canotilho observa que o Princípio da Inafastabilidade da Jurisdição é corolário do Estado Democrático de Direito . O Estado Democrático de Direito, além de prever normas que protejam o cidadão do próprio poder estatal, deve prover os meios de controle sob pena desses direitos se tornarem mera exaltação de uma falsa proteção a direitos fundamentais, e é exatamente esse o sentido da inafastabilidade da jurisdição.
Conforme se passa a demonstrar, a exigência do artigo 5º, I, da Lei 12.016/09, se interpretada em seu sentido literal, de ser obrigatório recorrer caso caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, contraria o art. 5º, XXXV da Constituição da República de 1988 e art. 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
Atualmente a única reserva constitucional feita ao princípio do amplo acesso ao Judiciário é a do art. 217, §1º da CR/88. Esta restrição refere-se ao ajuizamento de questões relativas à disciplina e às competições desportivas, que antes de chegarem ao Judiciário devem ser apreciadas, em até sessenta dias, pela Justiça Desportiva, órgão de cunho eminentemente administrativo.
Tal exceção se justifica pela especificidade da matéria. A prévia submissão de matérias atinentes à disciplina e competições esportivas à esfera administrativa não causam graves danos a direitos fundamentais, situação muito diversa daquelas que dão ensejo a impetração de Mandado de Segurança.
Após a promulgação da Constituição de 1988, perdem-se as justificativas e também o contexto para a manutenção da disposição que exige o prévio recurso à via administrativa como condição para o conhecimento de uma ação de Mandado de Segurança.
Com a perda de credibilidade da Administração Pública, marcada por inúmeros casos de corrupção, a efetivação do Princípio Democrático tem dependido cada vez mais da atuação e fiscalização do Poder Judiciário.
Com o objetivo de dar efetividade aos direitos fundamentais do cidadão ampliando o acesso ao Judiciário foi também firmado, em 13 de abril de 2009, o II Pacto Republicano entre os representantes dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo.
Esse pacto tem como norte a construção de um sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo, e entre os seus objetivos está o acesso universal à Justiça. Para a consecução desse objetivo assumiu-se o compromisso de incrementar medidas tendentes a assegurar maior efetividade ao reconhecimento dos direitos do cidadão e a prioridade às proposições legislativas relacionadas à concretização dos direitos fundamentais, democratização do acesso à Justiça e à efetividade da prestação Jurisdicional.
A questão da manutenção da norma contida no art. 5º, I, da Lei 12.016/09 torna-se ainda mais contraditória se levarmos em consideração que o III Pacto Republicano fora assinado em 13 de abril de 2009 e, quatro meses depois, edita-se lei que restringe o acesso do cidadão a um instrumento fundamental para o cumprimento e efetivação dos direito fundamentais através do acesso à justiça.
Assim, considerando esse quadro político e constitucional de que a regra, elevada a direito fundamental, é do amplo acesso ao Poder Judiciário, e sendo sua única exceção o artigo 217, §1º, não se pode admitir que para impetração do Mandado de Segurança se exija o prévio esgotamento da via administrativa caso haja recurso com efeito suspensivo e não se exija prestação de caução.
Nesse ponto é necessário distinguir duas situações fáticas que podem gerar confusão.
A primeira situação é daquele que teve contra si o ato da autoridade que representou resistência à sua pretensão e recorreu administrativamente com efeito suspensivo. Nessa hipótese será defesa a impetração do Mandado de Segurança pois lhe faltaria interesse de agir na modalidade necessidade. Uma declaração do Judiciário não seria mais necessária pois já se obteve, mesmo que provisoriamente, o que se quer, a perda de exigibilidade do ato. Nessa situação, inclusive, não haverá que se discutir o escoamento do prazo decadencial para impetração pois começará a correr novo prazo decadencial a partir da ciência da decisão sobre o recurso administrativo. Veja-se na decisão do MS 24. 511, de relatoria do Min. Marco Aurélio:
MANDADO DE SEGURANÇA – PENDÊNCIA DE RECURSO ADMINISTRATIVO COM EFEITO SUSPENSIVO – CARÊNCIA DA AÇÃO. Uma vez pendente recurso administrativo dotado de efeito suspensivo, como é o caso dos embargos declaratórios contra decisão do Tribunal de Contas da União – artigo 32, II e 34, § 2º, da Lei nº 8.443/92, mostra-se inadequada a impetração, a teor do disposto no artigo 5º, inciso I, da Lei nº 1.535/51 (MS 24511, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/2003, DJ 02-04-2004)

Outra situação diversa é a impetração de Mandado de Segurança contra ato de que caiba recurso com efeito suspensivo, versada na Lei 12.016/09. Aqui não há espaço para a restrição imposta pelo artigo 5º, I, da referida lei por restringir o acesso ao Judiciário. Havendo o ato de autoridade exeqüível e operável que implique resistência à pretensão do jurisdicionado já se faz presente o interesse processual.
Se o cidadão/administrado opta por ingressar diretamente em juízo, não pode o Poder Judiciário se furtar à prestação jurisdicional. Deve-se, obviamente, analisar a presença das condições da ação, entre elas o interesse de agir.
Nesse sentido veja-se como já se posicionavam o Tribunal Federal de Recursos e o próprio STF:
O que se exige é que o ato impugnado seja operante e exequível. O que não pode ocorrer é a utilização, ao mesmo tempo, do recurso administrativo com efeito suspensivo e do Mandado de Segurança, por isso que, interposto o recurso administrativo o ato deixa de ser operante e exequível (TFR-4a Turma, AMS 89.104-RJ, rel. Min. Carlos Velloso, j. 15.12.80);

… o prévio uso da via administrativa, no caso, não é pressuposto essencial ao exercício do direito de interposição do mandado de segurança. Condicionar a possibilidade do acesso ao Judiciário ao percurso administrativo, equivaleria a excluir da apreciação do Judiciário uma possível lesão a direito individual, em ostensivo gravame à garantia do art. 5º, XXXV da Constituição Federal. (MS 23.789, voto da Min. Ellen Gracie, julgamento em 30.06.05, DJ de 23.09.05)

4. Inconstitucionalidade do art. 5º, I, e o Princípio da Interpretação Conforme a Constituição

Nesse aparente conflito entre uma norma infraconstitucional e a norma constitucional do art. 5º, XXXV, o princípio da interpretação conforme à Constituição deve ser aplicado . Havendo mais de uma interpretação possível de determinada norma jurídica, deve o aplicador do direito optar pelo sentido que torne a norma compatível com a Constituição. Visa a interpretação conforme à Constituição, assim, a buscar o sentido necessário e o único que torna possível a existência válida da norma questionada em face da Constituição Federal.
Segundo o professor Jorge Miranda, a interpretação conforme a Constituição não é apenas uma regra de interpretação, mas um método de fiscalização de constitucionalidade, sendo aplicável quando, entre interpretações plausíveis e alternativas, exista alguma que permita compatibilizá-la com a Constituição.
O seu papel, como ensina Luís Roberto Barroso, é “o de ensejar, por via de interpretação extensiva ou restritiva, conforme o caso, uma alternativa legítima para o conteúdo de uma norma que se apresenta como suspeita” . A interpretação conforme a Constituição visa a buscar o sentido necessário e o único que torna possível a existência válida da norma questionada em face da Constituição Federal .
A Lei 12.016/09, conforme ressaltado, positivou alguns posicionamentos que tinham os tribunais sobre o Mandado de Segurança, o que geralmente leva os tribunais a dar interpretação restritiva às disposições da nova lei. Isso faz com que ganhe relevância o cuidado com interpretação conforme a Constituição da disposição do art. 5º, I, como meio de deixar ileso o Princípio e Direito Fundamental do amplo acesso ao Poder Judiciário.
Assim, tem o aplicador do direito condições de “salvar” a norma jurídica, aplicando o referido princípio, que equivale à declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, dando a possibilidade de o jurisdicionado optar pela via do recurso administrativo ou do Mandado de Segurança.
Aplicando-se o Princípio da Interpretação Conforme à Constituição, interpreta-se extensivamente o art. 5º, I, da Lei nº 12.016/09, de modo a admitir-se a impetração de Mandado de Segurança contra ato de que também caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, estando a impetração condicionada somente à operatividade ou exequibilidade do ato que se quer impugnar.

5. Referências Bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1998.
MAGALHÃES, Gustavo Alexandre. Sobre a reinterpretação do instituto da desapropriação de bens públicos em face do princípio federativo consagrado pela Constituição federal de 1988. Fórum de Direito Urbano e Ambiental, v. 36, p. 56-68, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 31 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Breves considerações em torno da questão da inafastabilidade da prestação jurisdicional. Disponível em http://www.jfrj.gov.br/Rev_SJRJ/num19/artigos/artigo_3.pdf. Acesso em 14 de agosto de 2009.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra editora, 1996. Tomo II.
NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto F.; colaboração de BONDIOLI, Luiz Guilherme Aidar. Código de processo civil e legislação processual em vigor. 41 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

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