A TENDÊNCIA DE VITIMIZAÇÃO DO CRIMINOSO NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

INTRODUÇÃO

 

Quando o primeiro Homem branco aportou em solo americano há mais de quinhentos anos, este território já se encontrava totalmente povoado por inúmeras tribos de povos nativos, onde cada um desses agrupamentos vivia de forma autônoma uns dos outros e possuíam sua própria forma de organização social. Além da pluralidade de povos nativos que aqui viviam, o continente recebeu ao longo de sua história várias etnias, notadamente no Brasil, o que caracterizou esta nação como heterogênea.

Durante toda a fase colonial do continente americano, não era importante aos interesses da metrópole europeia a organização social das colônias, que eram formadas em sua grande maioria por nativos, escravos negros, náufragos e degredados. Este fato deu origem aos inúmeros problemas sociais enfrentados pelo diversos países americanos durante todo o seu percurso histórico até os dias atuais. Aliás, a falta de comprometimento dos responsáveis pelos governos destes países com o bem estar social infelizmente ainda é a realidade que o povo latino-americano enfrenta.

O descaso político e social para com a grande massa da população brasileira, por exemplo, não sofreu alteração nem mesmo com a mudança da família real portuguesa de Lisboa ao Rio de Janeiro em 1808. Em se tratando particularmente do desenvolvimento do Direito Penal no Brasil, nota-se nesta fase, leis e decisões judiciais eivadas de preconceito racial e étnico, onde negros, nativos, mulatos e mestiços recebiam duras sanções penais, normalmente caracterizadas por violência física e sem nenhuma proporcionalidade entre o delito cometido e a pena recebida pelo autor da infração penal.

É cada vez mais crescente a onda de criminalidade no Brasil, onde a falta de segurança pública se tornou a maior preocupação no cotidiano dos brasileiros. O Poder Judiciário é visto pelo povo como inerte, moroso. A atuação da polícia nas ruas tem dado grande margem a críticas contra a instituição. O sistema carcerário brasileiro não é capaz de cumprir com o principal objetivo da lei de execução penal: sociabilizar e reeducar o indivíduo para a sua nova inserção no convívio social.

Problemas sociais relacionados à falta de condições de vida digna e com qualidade é a principal porta de entrada para a marginalidade. A estatística criminal vem aumentando a cada dia que passa, agora sob o embalo do tráfico de drogas. O que até pouco tempo atrás era a realidade somente dos grandes centros urbanos, agora também se estende a população das pequenas cidades do interior que igualmente também vivem em estado de alerta, receosas com a crescente onda de violência fomentada principalmente pelo uso e comercialização de drogas ilícitas.

Entre tantos problemas sociais presentes na realidade de grande parte da população brasileira, o que se tornou alvo de iminente preocupação é a questão envolvendo a segurança pública, onde os meios repreensivos da força policial e o sistema carcerário são insuficientes e precários no combate ao crime e ressocialização do apenado. Infelizmente, em muitos casos tem sido comum a polícia ser vista como inimiga pela população, e não como órgão de segurança propriamente dito, responsável pela proteção das pessoas de bem.

Esta situação possui raiz histórica, faz parte não só do percurso histórico do Brasil, mas também da própria formação do Direito Penal pátrio. Apesar de que atualmente toda a legislação brasileira está alicerçada principalmente nos princípios de Igualdade e Equidade, a verdade é que as decisões judiciais e a realidade do sistema carcerário brasileiro ainda são eivadas do preconceito histórico onde as sanções penais mais severas e o enclausuramento em celas com tratamento subumano parecem só ter cabimento aos pobres e negros. Infrações penais popularmente conhecidas por “crime de colarinho branco” possuem penas pífias, onde muitas vezes o apenado nem sequer recebe detenção.

Este fato faz com que o criminoso no Brasil seja visto como vítima do nosso próprio sistema, principalmente diante das informações propagadas pela mídia. Notícias de maus tratos de agentes penitenciários contra detentos e as condições de vida precária nestes estabelecimentos, ou ainda, as violentas incursões da polícia nas favelas das grandes cidades são manchetes corriqueiras.

Não se deseja com isto desmoralizar os bons costumes e os preceitos éticos e morais da nação, mas é preciso urgentemente um sistema carcerário no Brasil onde o apenado cumpra diante da sociedade a sanção penal imposta pelo Estado ante ao delito cometido, mas que também receba condições reais de voltar a viver no seio de um ambiente coletivo com mínimas chances de voltar a delinqüir.

 

 

CAPÍTULO I – ASPECTOS HISTÓRICOS

 

O Direito nos tempos remotos

 

A evolução da ciência jurídica está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento do homem em sociedade. Aquele ser que até então vivia isoladamente, um ser individualista, sem se dar conta de sua racionalidade, desconhecia também a sensação de estar em conflito com outro animal de sua mesma espécie, na disputa por um mesmo território ou qualquer outra coisa que despertasse um interesse em comum entre ambos. A partir do momento que o homem reconheceu sua condição de ser um ser social e passou a conviver com outros indivíduos iguais a si, neste mesmo instante os conflitos passaram a surgir.

Desse modo, o surgimento das primeiras instituições jurídicas, ou a origem do Direito propriamente dito, pode ser visto como o efeito do reconhecimento do homem primata como sendo um ser social. Ao passar a viver em um ambiente coletivo, houve a conseqüente necessidade de se estabelecer regras para organizar e até mesmo controlar os hábitos daqueles que formavam uma mesma comunidade ou clã.[1]

Na formação dos primeiros aglomeramentos de pessoas os conflitos possuíam caráter primitivo, e a necessidade era de manter-se com vida. Os indivíduos possuíam o premente desejo de sobreviver diante das intempéries que se apresentavam tais como os infortúnios da natureza que acarretavam a escassez de alimentos, por exemplo. Isso ocasionava agressões e desentendimentos entre os indivíduos dentro de determinada comunidade ou de um clã contra outro grupo de indivíduos.

João José Leal ensina que desde sempre, o homem viveu em grupos e para reger sua vida social, criou regras, que deixaram de ser tradições, superstições ou costume místicos, observados pelos membros dos grupos. Tudo era mistério e divino, razão que o respeito a estas normas era de natureza sagrada e de onde vem a ideia de proteção totêmica e das leis do tabu, usado para comportamento. O totem representava a entidade protetora do grupo, ou a representação do deus que os protegia. Assim, o grupo primitivo reagia contra o infrator e o punia, para restabelecer a proteção sagrada, que havia sido perdida com a ofensa às normas do tabu. A pena remota significava vingança e revide à agressão sofrida e sua aplicação aplacava a cólera divina, naquele interesse coletivo. Não havia lugar para a individualidade.

 

Numa etapa encontramos as penas de perda da paz e de vingança de sangue, que consistia na expulsão do infrator do meio em que vivia. Para o indivíduo isso significava a morte, uma vez que era impossível sobreviver isolado em meio à natureza hostil. Já a vingança de sangue era aplicada aos infratores estranhos ao grupo, por violações ao tabu. É provável que a guerra entre as tribos primitivas fossem motivadas pela represália de indivíduos do mesmo clã sangüíneo contra membros de outros grupos, dando origem à convencionada ‘vingança do sangue’. Em todas estas etapas o cunho religioso e consuetudinário imperava sobre as idéias do direito penal. As superstições e crenças constituíam-se em fundamentos de todas as atitudes do homem primitivo. O caráter, portanto, era muito mais religioso que jurídico. O poder coercitivo atuava com base no temor religioso ou mágico. O crime é a transgressão da ordem jurídica estabelecida pelo poder do Estado e a pena a reação do Estado contra a vontade individual oposta à sua. (LEAL, 2012, p.08)

 

 Nesta fase arcaica da história da humanidade e conseqüentemente da evolução do direito não havia uma tipificação de quais condutas seriam consideradas ilícitas ou não, nos moldes como o Direito Penal se apresenta nos dias atuais em pelo menos na maior parte dos países ocidentes que são reconhecidos como nações com governos democráticos e laicos.

 

A escassez por vezes diminui, por vezes aumenta o nível de agressão. No norte gelado, as pessoas combatiam a natureza em vez de combater uns aos outros. Somente as tribos do Ártico, entre os filhos do homem, ignoram o que seja a guerra e o sangue humano. A ética esquimó envolvia rígidos padrões de comportamento associados aos perigos de sua existência e às dificuldades da caça. Mas entre os ik, na África, as penúrias e as pressões da desapropriação geravam violência. Como dizia o velho provérbio: O caçador ordena, mas o agricultor suplica. (THOMSON, 2002, p. 27)

 

 

A fase arcaica do Direito

 

Os primeiros agrupamentos de pessoas eram formados por indivíduos de uma mesma família. O parentesco e os laços de consangüinidade foram a base que formaram as primeiras comunidades e também o direito arcaico, já que os costumes, as crenças e tradições do clã ditavam as regras para todo o grupo.

Portanto, as primeiras instituições jurídicas surgiram a partir da formação do grupo familiar e, cada um dos grupos de indivíduos existentes ou cada clã possuía suas próprias regras, fortemente impregnadas de valor consuetudinário, já que nesta fase arcaica do direito e também da formação das primeiras civilizações não havia normas positivadas, pois a cultura da escrita ainda nem sequer era conhecida.

Um exemplo bem conhecido deste fato é a origem do povo judeu, que foi denominado primeiramente de Hebreu, em homenagem ao patriarca do clã, Abraão. Isaque, único filho legítimo de Abraão e Sara, casou-se com uma mulher dentre a sua parentela. Esaú e Jacó, filhos de Isaque e netos de Abraão, receberam o mesmo conselho para encontrar uma esposa entre os seus parentes, mas somente Jacó seguiu este mandamento deixado pelo patriarca de seu clã. Os descentes de Jacó deram origem às doze tribos de Israel e, por conseqüência, à tribo de Judá e a formação de uma numerosa civilização com hábitos, costumes e crenças próprias, adquiridas por estes indivíduos no decorrer de sua história e resguardados fielmente até os dias de hoje por seus descendentes.

 

E disse Abraão: Porque eu dizia comigo: Certamente não há temor de Deus neste lugar, e eles me matarão por causa da minha mulher. E, na verdade, é ela também minha irmã, filha de meu pai, mas não filha da minha mãe; e veio a ser minha mulher; E aconteceu que, fazendo-me Deus sair errante da casa de meu pai, eu lhe disse: Seja esta a graça que me farás em todo o lugar aonde chegarmos, dize de mim: É meu irmão. Então tomou Abimeleque ovelhas e vacas, e servos e servas, e os deu a Abraão; e restituiu-lhe Sara, sua mulher. E disse Abimeleque: Eis que a minha terra está diante da tua face; habita onde for bom aos teus olhos. E a Sara disse: Vês que tenho dado ao teu irmão mil moedas de prata; eis que ele te seja por véu dos olhos para com todos os que contigo estão, e até para com todos os outros; e estás advertida.
E orou Abraão a Deus, e sarou Deus a Abimeleque, e à sua mulher, e às suas servas, de maneira que tiveram filhos. (GÊNESIS, 1997, p. 19)

É nítida nos textos bíblicos a preocupação dos patriarcas e dos sacerdotes em manter a hegemonia na linhagem do povo Hebreu e este fato retrata fielmente o cenário social e jurídico da época.

Qualquer manifestação de crença ou costume contrário ao que determinado clã ou povoado estava habituado, era considerado crime, injusto. Daí a preocupação em manter o povo Hebreu fortemente resguardado contra os costumes e crenças de povos estrangeiros, o que explica a punição e o combate contra a idolatria, por exemplo.

 

A dificuldade de se impor uma causa primeira e única para explicar as origens do direito arcaico deve-se em muito ao amplo quadro de hipóteses possíveis e proposições explicativas distintas. O direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade pré-histórica fundamenta-se no princípio do parentesco, nada mais natural do que considerar que a base geradora do jurídico encontra-se primeiramente, nos laços de consangüinidade, nas práticas de convívio familiar de um mesmo grupo social, unido por crenças e tradições. É neste sentido que a lei primitiva da propriedade e das sucessões teve em grande parte sua origem na família e nos procedimentos que a circunscreveram, como as crenças, os sacrifícios e o culto aos mortos. Ninguém melhor que Fustel de Coulanges para escrever que o direito antigo não é resultante de uma única pessoa, pois se impôs a qualquer tipo de legislador. Nasceu espontânea e inteiramente nos antigos princípios que constituíram a família, derivando “das crenças religiosas, universalmente admitidas na idade primitiva desses povos e exercendo domínio sobre as inteligências e sobre as vontades”. Posteriormente, num tempo em que inexistiam legislações escritas, códigos formais, as práticas primárias de controle são transmitidas oralmente, marcadas por revelações sagradas e divinas. (WOLKMER, 2006, p. 18)

 

Uma vez infringido algum princípio relacionado aos costumes, ao meio de convivência ou ao modo de vida daquele clã ou grupo de pessoas surgia para estes a possibilidade e às vezes o dever de aplicar uma conseqüência, que seria uma sanção ao infrator em retribuição ao mal causado para aquela comunidade. Nesta fase da história, nas civilizações primitivas não havia distinção entre o âmbito jurídico e religião.

Qualquer ato ou crença diverso ao propagado entre os indivíduos de um mesmo grupo social poderia ser considerado crime e ser punido com a pena de morte. Neste sistema de direito arcaico considerava-se justo aquilo que era responsável por manter a união e estabilidade social de todo o grupo. Qualquer um do grupo poderia ser culpado e sofrer alguma punição por causa de uma tempestade que destruiu a lavoura de determinado produto agrícola indispensável para a subsistência da coletividade, por exemplo. Os conflitos de interesses individuais somente eram resolvidos após a negociação entre as partes, muitas vezes após longo percurso de tempo, sem um magistrado com a função de julgar e dizer a quem pertence o direito, na forma que ocorre nos dias de hoje.

 

Outrossim, o Direito era fortemente impregnado pela religião, de tal maneira que a distinção entre regra religiosa e regra jurídica muitas vezes era difícil. Nessas sociedades a religião, a moral, o direito etc. se confundiam. A influência da religião sobre o direito manteve-se de resto em numerosos sistemas jurídicos até nossos dias, podendo-se citar como exemplo o mulçumano e o hindu.  […] No sistema arcaico do Direito considerava-se justo tudo aquilo que interessava para a manutenção da união do grupo social e não o que tendia ao respeito dos direitos individuais. Daí uma grande severidade em relação a todo o comportamento anti-social, quer dizer, contrário aos interesses do grupo, e, pelo contrário, uma tendência a procurar a conciliação para resolver todo conflito no seio do grupo. A função de julgar não consistia em resolver um conflito de interesses segundo regras pré-estabelecidas, mas em tentar obter o acordo das partes por concessões recíprocas; donde a importância das negociações, que podiam durar dias, e também a ausência de qualquer noção de autoridade do caso julgado. (ROMÃO; CAVALCANTI; KOGAN; 2003, p. 37)

 

 

 

 

 

O Direito positivado

 

Desde o surgimento das primeiras civilizações houve a necessidade de se estabelecer regras com a finalidade de moldar a conduta das pessoas e organizar o convívio destas na sociedade. Nesta fase do desenvolvimento social e jurídico da humanidade, não existia os conceitos de direito, justiça, política e religião com há atualmente.

Eram os costumes e as crenças religiosas que nesta época ditam as regras e procuram moldar o comportamento de cada individuo dentro do seu povoado. “Eram direitos numerosos. Cada comunidade tinha o seu próprio costume, porque cada qual vivia isoladamente, quase sem contato com outras comunidades.” (ROMÃO; CAVALCANTI; KOGAN, 2003, p. 36)

Há quem defenda fortemente a idéia de que o surgimento da ciência jurídica está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento da escrita, mas é incontestável que muitos povos mesmo sem possuir o conhecimento da escrita conquistaram largo desenvolvimento social e jurídico, a exemplo dos maias, incas e astecas. A ausência de regras positivadas não os impediu de se organizarem socialmente e formar vastos impérios. Atualmente, é consenso entre os historiadores que a origem do Direito situa-se na fase pré-histórica, onde o Homem ainda não havia desenvolvido a escrita.

Cada civilização primitiva foi desenvolvendo a técnica da escrita em tempos diferentes uma das outras. Mesmo que a origem da ciência jurídica se deu no período pré-histórico, é incontestável que o mérito do largo desenvolvimento do Direito ao longo do percurso histórico se deve aos textos escritos.[2]

Os primeiros documentos contendo textos jurídicos não eram códigos propriamente ditos. O conteúdo destes textos não apresentava teor de lei, mas jurisprudencial, já que estes textos contendo direitos cuneiformes descreviam um caso concreto e a solução jurídica para o caso em tela, devendo o juiz seguir aqueles ensinamentos na prática. [3]

 

Com o passar do tempo, assim como houve o desenvolvimento das sociedades primitivas de caráter familiar e patriarcal em vastas e numerosas civilizações, o Direito também apresentou grande evolução em cada uma dessas sociedades.

 

Apesar de que os conhecimentos de alguns ramos da ciência são bem atuais, como por exemplo, a tecnologia e a medicina, os alicerces do Direito são antiguíssimos, pois se desenvolveu concomitantemente à inserção do homem em um ambiente coletivo.

 

Juarez Tavares ensina que o Direito Penal se origina no período superior da barbárie, com a divisão social do trabalho e da sociedade de classes.

 

Iniciado por volta de 4.000 a.C., é marcado pelo aparecimento das primeira civilizações, com organização sócio-política-econômica e a figura do soberano representando o poder absoluto do Estado nascente. São ingredientes que permitirão a repressão criminal de caráter público, com reação penal proporcional à gravidade do delito. É o tempo do Talião. Mesmo aí o Direito Penal ainda tem caráter místico, menos que no período primitivo. Na Lei do Talião o castigo tem mesma proporção da culpa. Significa limitar, restringir, retribuir na mesma proporção de suas gravidade as conseqüências do crime praticado, na mesma forma e intensidade do mal por ele causado. É o popular ‘olho por olho, dente por dente’. É uma forma de acabar com a punição ilimitada e desregrada. Embora suas penas pareçam cruéis, coube à Lei de Talião um abrandamento do sistema punitivo então vigente. A maioria dos povos antigos recorreu a esta prática. Encontramos citações a respeito no Código de Hamurabi. Os hebreus também utilizaram o recurso, constatável tal fato na própria Bíblia. Na Lei das XII Tábuas o termo ‘talião’ é citado explicitamente e no século IX a.C. é a vez do Código de Manu recorrer a tal artefato. (TAVARES, 2009.p, 116)

 

Ao desenvolver a técnica da escrita, houve um significativo amadurecimento do direito ainda nas civilizações antigas, que aos poucos foi perdendo o seu caráter consuetudinário e religioso em grande parte destas sociedades. Os textos com conteúdos jurídicos passaram a tratar de assuntos relacionados ao patrimônio das pessoas, direito de sucessão e família, e normas penais, por exemplo.

Importante salientar, por fim, que muitos dos preceitos jurídicos que surgiram nos sistemas legais de sociedades antigas ainda hoje servem de importante alicerce para as instituições jurídicas atuais. A maior parte das legislações dos países ocidentais atualmente possui seus alicerces em fundamentos e princípios jurídicos que surgiram em algumas dessas civilizações antigas e, em se tratando de Direito Penal, a base jurídica ou o fundamento destas normas vem principalmente de ideais da Roma e da Grécia.

 

A contribuição herdada do Direito Penal Romano aos dias atuais

 

Como o enfoque do presente estudo é   especificamente o instituto do direito penal, necessário se faz destacar pontos importantes do seu desenvolvimento histórico, principalmente para a compreensão do sistema penal e carcerário no Brasil atualmente, já que as leis e os princípios que fundamentam nosso ordenamento jurídico é fruto do desenvolvimento social, histórico e cultural de vários povos no percorrer do tempo.

Os códigos morais tendem a estar relacionados com as sociedades em que evoluem, e embora possa haver um padrão absoluto, visões de certo e errado às vezes variam consideravelmente. Circunstâncias econômicas, disponibilidade de comida e outros suprimentos, são fatores identificáveis que exercem influência sobre os padrões morais. Na história é uma característica de grupos relativamente ricos, a tolerância ao suborno, como aconteceu na Roma Imperial, na China, no ancien régime Frances e na Bizâncio medieval. 

 

O romano republicano orgulhava-se de comer moderadamente. Mas, algumas centenas de anos depois, o herói cômico da Roma Imperial, Trimalquio, vomitou só para poder comer mais, e o imperador Vitélio, em nove meses, supostamente consumia uma fortuna em comida. Maomé classificava como três as mais importantes atividades humanas: a prece, o jejum e a doação de esmolas, mas seus seguidores otomanos foram bem menos comedidos. Buda, Lao-Tse e Sócrates pregavam a moderação dos apetites. (THOMSON, 2002, p. 27)

 

 

As leis e princípios jurídicos vigentes no Brasil atualmente sofreram a influência de pensamentos vindos de diversas épocas e partes do mundo, mas os princípios encontrados em nossa legislação criminal em sua grande maioria contêm fundamentos com origem principalmente oriunda do antigo direito penal romano.[4]

O Direito é fruto da formação das primeiras sociedades e sua conseqüente necessidade de impor limites ao comportamento do homem, para assim alcançar o fim de promover o equilíbrio social dentro da própria comunidade. Para que haja paz e estabilidade dentro do grupo de indivíduos que ocupam o mesmo tempo e espaço é necessário que todos respeitem as regras ali estipuladas, independentemente se escritas ou orais.

Nas sociedades primitivas as sanções penais tinham caráter religioso e místico, pois o próprio sistema jurídico nesta fase da história da humanidade continha características baseadas na religião e nos costumes. Doenças, fome e fenômenos naturais eram considerados castigos divinos em razão da contravenção de alguma crença. Tais infortúnios eram considerados uma sanção a todo o grupo, o preço pago pela não observância de algum preceito de cunho religioso que determinada comunidade tinha a obrigação de preservar.

 

Quando a sociedade surge, há necessidade de se impor limites a essa ação humana. Esse fato é muito bem retratado pela abstração do legislador, quando valora as normas de condutas que devem ser respeitadas pelo corpo social, em determinado tempo e determinado espaço. Estes, por meio de normas, quer orais, quer escritas, teriam a finalidade de frear o ímpeto do homem quando está atuando em grupo. Embora o direito tenha surgido junto com o homem, não podemos falar em um sistema orgânico de princípios nos tempos primitivos. Os grupos sociais, dessa era, viviam em um ambiente mágico e religioso: a peste, a seca e todos os fenômenos maléficos eram vistos como resultantes das forças divinas. O funcionamento da sociedade dava-se de forma que se um indivíduo cometia um crime, as explicações para a sua punição estava nos deuses (se a nação era politeísta), ou mesmo em deus (se a nação era monoteísta). (COSTA, 2007, p. 30)

 

 

A preocupação do Direito em fazer justiça

 

Com o crescimento e multiplicação dos povoados e a utilização da escrita por grande parte das civilizações, passou-se a tipificar em textos quais condutas seriam lícitas ou não aos participantes de cada grupo social. Ainda assim, os costumes e os rituais religiosos continuaram a ser a base do sistema jurídico da época.

Era função dos sacerdotes a interpretação e aplicação da lei, o que era feito com base nos costumes e crenças de cada clã ou comunidade. A sanção penal significava uma vingança, uma retribuição ao mau comportamento daquele povoado ou por um ato veemente proibido praticado por uma pessoa em particular. [5]

Nas sociedades primitivas a pena consistia em mera preocupação de se fazer justiça e, aos poucos, foi ganhando característica de vingança privada, pois não havia neste caso a preocupação em reparar o dano sofrido pela vítima e nem possuía objetivo sócio educativo, afim de que aquele que perturbou a estabilidade social do grupo não voltasse a praticar os mesmos atos novamente.

Esta característica de vingança privada na esfera criminal dos povos primitivos deu origem a uma desproporcionalidade da pena aplicada em relação ao delito praticado, uma vez que a reação e o desejo de se fazer justiça partia não somente do ofendido, mas também de sua própria família ou tribo e a vingança nem sempre estava centralizada na pessoa do ofensor, mas em todo o seu grupo de convívio comum. [6]

Com a intenção de evitar que comunidades ou clãs inteiros acabassem dizimados por motivos muitas vezes considerados mesquinhos, surge em seguida uma nova etapa na evolução do direito penal – A Lei de Talião – definido simplesmente pelo conhecido ditado popular: “olho por olho, dente por dente”. A Lei de Talião consistia em dar proporcionalidade na pena aplicada ao meliante diante da ofensa cometida pelo mesmo. O primeiro texto jurídico a conter este preceito foi o Código de Hamurabi, exemplo colacionado a partir daí nos textos com conteúdo jurídico de outras civilizações da antiguidade.[7]

 

O Direito do estado em punir

 

Das civilizações antigas, o Direito Romano foi o que mais influenciou a política e o Direito dos países ocidentais, inclusive o Brasil. Os institutos e princípios jurídicos da Roma antiga ainda hoje são os alicerces e os fundamentos da ciência jurídica contemporânea. Após as formas arcaicas de punição na forma de vingança divina e na modalidade de vingança privada, esta última na qual se manifestava através da composição do litígio entre o ofendido e o ofensor, o Direito Penal romano passa a ser considerado assunto de Estado, e não mais de sacerdotes e particulares.

O direito de punir passa a ser de responsabilidade do Estado e não mais do próprio ofendido e, surgem assim, as primeiras espécies de penas ou sanções criminais: penas corporais, penas infamantes e penas pecuniárias. Para os crimes comuns, de menor potencial ofensivo, normalmente a sanção aplicada era a pena de multa, situação muito semelhante a prevista na legislação penal brasileira vigente nos dias de hoje, em que somente é prevista a sanção penal na modalidade de detenção, considerada a maior pena em nosso sistema, para as infrações mais graves.[8]

Quando a vingança, a punição, a obrigação ou o dever de impor uma sanção a determinada conduta de um indivíduo do grupo social passa a ser controlado pelo Estado, o Direito Romano passa a dividir os delitos em duas importantes categorias, e que ainda hoje recebem classificação semelhante em nosso sistema penal: os crimes de ação penal pública – crimina pública – de responsabilidade e interesse do Estado, representado este na pessoa de um magistrado; e a delicta privata – para as infrações menores, condutas menos graves, cabendo ao próprio ofendido a função de reprimir a conduta delituosa, com supervisão do Estado apenas para regular o seu exercício.[9]     

Durante a idade média, a Europa oriental viu crescer o estilo nas aristocracias, e diminuir a liberdade para as massas camponesas. Na Prússia houve a sinistra ascensão da classe dos Junkers e o concomitante declínio da condição dos camponeses. Na Hungria, estes camponeses se tornaram servos e podiam ser chicoteados. O mais serio de tudo – devido a extensão do território – foi o governo russo imperial de 1649, que deu início ao rápido declínio do campesinato russo para a servidão.

 

A liberdade de movimento tornou-se ilegal. Logo os servos podiam ser açoitados por seus patrões e em 1660 a imensa maioria da população russa era de servos. Foi uma repressão em massa com conseqüências duradouras. Na Polônia, a crescente população judaica empurrada para o leste depois de expulsa da Espanha, foi segregada e jogada nos guetos. Já em 1648, sua impopularidade aumentara, pois eles eram coletores de impostos do reino, e muitos foram massacrados pelos cossacos. A vastidão e o relativo isolamento da Rússia significava que essa violência sádica continuava sendo um importante instrumento de controle social. A tortura com batog, cnute e fogo era prática normal. Em 1704, quando o Regimento Strelsti amotinou-se contra Pedro, o Grande, quase dois mil soldados foram torturados durante seis semanas. Os russos tinham até sociedades de tortura, onde os membros voluntariamente se submetiam as torturas, de modo a ficarem mais bem preparados para resistirem a confissão na situação real. Pedro, embora fizesse uso da violência planejada, de fato realizou algumas reformas éticas notadamente, o fim da prática do infanticídio, método pelo qual até então, eram descartados os bebês ilegítimos ou deformados. ( ….) Pouco surpreende que nesta época a Rússia tenha produzida várias seitas religiosas escapistas. Remanescentes dessa época ainda estavam fazendo objeções à educação compulsória e roupas formais em 1930 no Canadá. (THOMSON, 202, P.414)

 

É incalculável a contribuição que o Direito Romano da antiguidade deixou aos países ocidentais. No campo do Direito penal, podemos citar mais alguns importantíssimos conceitos que tiverem origem no antigo direito romano e que são muito usuais ainda nos dias de hoje: “O Direito Romano contribuiu para a evolução do direito criminal, por meio da criação de princípios criminais, como erro, culpa, dolo, imputabilidade, coação irresistível, agravantes, atenuantes, legítima defesa.” (COSTA, 2007, p. 47-48)

Apesar de toda a riquíssima contribuição que os países ocidentais herdaram do Direito Romano da antiguidade na formação dos conceitos políticos e jurídicos de cada uma destas sociedades, inclusive as jovens nações latino-americanas, este gigantesco império já possuía problemas sociais bem atuais e que em muito se parecem com o contexto histórico em que está inserido o Brasil.

 

As doses de pena

 

A enorme desigualdade social entre plebeus e patrícios, os problemas relacionados com a falta de educação e cultura das camadas mais pobres da sociedade, a falta de saneamento básico, as doenças, o grande número de escravos e a alta taxa de criminalidade mais a soma que todos estes problemas resultaram fez com que os procedimentos criminais fossem insuficientes para manter a segurança e a tranquilidade social do império.

 

Não bastava apenas a força física dos seus exércitos para manter as conquistas territoriais do império. Fazia-se necessário um avançado sistema jurídico, que mantivesse a ordem, a chamada pax romana, nas mais distantes regiões dominadas. Daí decorre o motivo de serem tão extraordinários no início da história da jurisdicidade, com seus institutos, práticas e entendimentos doutrinários perdurando até hoje. Os romanos não sistematizaram os institutos penais. Cada caso era julgado em sua particularidade. O processo penal teve relevante importância. No campo específico do Direito Penal, após o período primitivo de caráter essencialmente religioso, houve uma preocupação de laicizar o sistema repressivo, punindo o infrator com fundamento no interesse individual ou público. As infrações passam a ser divididas em crimes públicos (crimina pública) e privados (delicta privata). Os primeiros constituíam-se em atos atentatórios à segurança interna ou externa do Estado Romano e, por isso, cabia a este exercer a repressão contra o delinqüente. Com o transcorrer dos tempos outros atos passaram à categoria de crimes públicos, como é o caso do homicídio, originariamente sancionado pelos familiares da vítima sob a denominação. As penas eram severas, como de morte ou deportação. Os crimes privados ficavam sujeitos à repressão do ofendido ou de seus familiares e eram julgados pela justiça civil que, na maioria dos casos, impunha às partes a composição.

As penas eram: supplicium (executava-se o delinqüente) damnum (pagamento em dinheiro) poena (pagamento em dinheiro quando o delito era de lesões) Outro aspecto interessante verifica-se no poder concedido ao pater famílias, que atua não só no direito de família mas também no criminal. Houve tempo em que dispunha até mesmo de direito de vida e morte sobre todos os seus familiares. Para os romanos a pena criminal, passado o período primitivo, revestia-se de uma função retributiva, de exemplaridade e, também, de prevenção. Também cabe assinalar que o Direito Penal romano atingiu um grau técnico-jurídico de elaboração suficiente para distinguir o elemento subjetivo da infração (dolo ou culpa) do fato puramente material. Surgem daí as noções de crimes dolosos (intencional) e culposos (não intencional). No caráter da imputabilidade, os juristas romanos souberam compreender que os menores e os doentes mentais não podiam ser capazes de agir com culpabilidade. (THOMSON, 202, P.414)

 

A falta de segurança e estabilidade social que assolou o império romano há tantos séculos atrás é o cenário político e social atual de vários países, inclusive o Brasil. A alta taxa de criminalidade e a insegurança social no Brasil não são mais um problema exclusivo das grandes cidades, pois a má distribuição de renda e o consumo cada vez mais excessivo de drogas vêm alastrando estes problemas sociais para as pequenas cidades do interior. O sistema penal e carcerário brasileiro há muito vem mostrando sinais de falência não sendo mais suficiente uma sanção penal para reprimir as condutas violentas e anti-sociais.

Em Portugal, o assunto é debatido de forma aberta e a imprensa é atacada pelos críticos, questionando a forma como os crimes são noticiados.

 

Em Portugal só se pode falar de assaltos se estes forem apresentados como uma consequência da crise (Veja-se por exemplo este título da edição de hoje do PÚBLICO “Crimes violentos alastram pelo país à medida da crise financeira” ). Esta ideia de que os desempregados e os pobres se tornam em ladrões de caçadeira em punho parece-me profundamente ofensiva para os desempregados e para os pobres pois é não apenas uma ideia preconceituosa mas também falsa. Do que não se pode falar é da influência da legislação e do desfecho de vários julgamentos na proliferação do crime. Apanhar uma couve, meia dúzia de batatas. É crime. Será crime matar a fome aos filhos? Mas o que se pode chamar a assaltos á mão armada?
Mas não será crime aquilo que sujeitos feitos governantes fizeram a este país? Não será crime ver o que desavergonhadamente acontece todos os dias, e, todos os dias vem relatado na imprensa? (O INSURGENTE, Blog )

 

 

Na prática, e lei de execução penal brasileira não é capaz e nem eficiente em cumprir com a sua principal tarefa: reeducar o delinqüente para voltar a conviver pacificamente em sociedade, com uma pequena margem para a reincidência. “Os problemas que Roma tinha eram sociais e não penais, mas desde aquela época se esperava que o direito penal fosse resolver os problemas da sociedade.” (COSTA, 2007, p. 59)

 

A imagem do negro e do índio apenado durante a formação da sociedade brasileira

 

Para a compreensão dos problemas sociais que marcam os dias atuais no Brasil, principalmente no tocante à questão da alta taxa de criminalidade cada vez mais crescente e os meios cada vez mais ineficazes de repreensão aos crimes, necessário se faz a recordação de alguns fatos históricos ocorridos desde a chegada principalmente de portugueses em nosso território e que resultaram na formação da sociedade brasileira.

A principal arma utilizada pelos europeus na conquista destas terras não foram a espada ou a pólvora, mas o sentimento de superioridade destes em relação aos nativos que aqui habitavam – eurocentrismo – o que resultou no extermínio de diversas tribos e etnias originárias deste continente logo no início do processo de colonização e deu origem aos inúmeros problemas sociais enfrentados não somente pelo Brasil mas também pelos demais países latino-americanos até os dias atuais.

Miguel Deretti relata a chegada dos primeiros europeus ao fértil Vale do Itajaí, na região sul do Brasil, localizado no coração do estado de Santa Catarina, e narra os conflitos existentes com os índios.

 

Em 1901, um grupo de mais de 50 índios botocudos, aproveitando-se da ausência do chefe da família, atacaram com grande violência a casa dos Schiochet, matando a mãe, com 36 anos de idade, as duas filhas, com 10 e 12 anos respectivamente. Dois filhos pequenos, com 3 e 6 anos de idade escaparam da morte escondendo-se dentro de um bueiro. No mesmo dia, ainda no mesmo lugar, os índios atacaram a família de Lourenço Mondini, com gritos e flechas. (DERETTI. 1970, p. 60)

 

 

Além do extermínio em massa de povos nativos e a cruel realidade da mão de obra escrava que marcou o processo histórico e a formação da sociedade brasileira, a idéia de inferioridade destas raças em relação ao homem branco, europeu, deixou cicatrizes também na área criminal. Apesar dos avanços que a legislação recebeu no decorrer do tempo, principalmente após os debates envolvendo a questão dos Direito Humanos, a verdade é que na prática nosso sistema carcerário e as próprias sanções penais estabelecidas em lei são eivados do mesmo racismo histórico que fez parte do conteúdo da legislação penal brasileira na fase colonial e imperial do país. [10]

“Nessa visão, ao fazer a apologia da modernidade, entende-se que todos os ‘avanços’ que ela representa constituem o resultado de um desenvolvimento natural do próprio ‘ser europeu’ sem levar em consideração a existência da América (…)”. (WOLKMER, 2006)

O processo histórico nem sempre representa o desenvolvimento social para algumas nações, e infelizmente esta é a realidade dos países latino-americanos. O interesse das metrópoles européias em suas colônias era exclusivamente mercantilista e, aliado ao fato de considerarem índios, negros e mestiços como uma raça inferior, a única coisa em que os exploradores europeus demonstravam interesse era nas riquezas daqui extraídas. Na fase colonial, não havia interesse por parte da metrópole com a formação social de sua colônia.

 

A aplicação das penas no novo mundo

 

No Brasil, a realidade da grande massa da população, constituída em sua maior parte por escravos negros, nativos e mestiços, não se alterou nem mesmo com a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808.

Apesar da modernização e outras mudanças significativas que ocorreram na colônia nesta fase, ora sede da coroa, as decisões judiciais e a legislação penal continham conteúdo com preconceito étnico-racial, já que o índio e o negro, raças que até então predominavam no cenário social brasileiro não eram considerados cidadãos, e sim, sujeitos sem história, incapazes de conquistar algo e de tomar decisões.

 

Desde essa época fundou-se um saber antropológico aplicado à periferia. Esse saber primeiramente adotou uma roupagem teológica, ora classificando os índios de criaturas “puras” e “infantis”, ora concebendo-os como bárbaros, pagãos e adoradores do demônio. Aquela época, que precedia o auge do mercantilismo, já demonstrava sinais de decadência da própria visão teológica de mundo e trazia as sementes do que veio a ser chamado de era moderna. Assim, logo depois, o saber antropológico de inspiração religiosa deu lugar à matriz cientificista naturalista. E, a partir daí, o índio e depois os negros, mestiços e latino-americanos foram atingidos pelo rótulo de seres “naturalmente inferiores”. De maneira geral, no período da conquista, o índio era visto como um ser passivo, incapaz de se tomar sujeito de sua própria história. Esta imagem permanece até os dias de hoje e estende-se ao latino-americano em geral. Na verdade, a realidade dos fatos contradiz esse entendimento, recuperando a “história invisível” da conquista, o processo de resistência militar e, principalmente, cultural dos povos ameríndios. (WOLKMER, 2006)

 

Antes de os portugueses aportarem em solo tupiniquim, este território era ocupado por inúmeras tribos de nativos, cada uma com sua própria organização social com língua, crenças e costumes bem diferentes umas das outras, assim como ocorreu na formação dos primeiros grupos sociais no antigo continente europeu milhares de anos antes.

Ainda não dominavam a técnica da escrita, por isso não há informações precisas sobre a forma de organização social destas comunidades e principalmente sobre a forma de punição que recebiam os infratores destes grupos de nativos, mas de qualquer forma, o que passou a valer para todos foi as desconhecidas e talvez inexplicáveis regras do povo dominador, leia-se Europeus.

 

A influência da religião

 

Os colonizadores portugueses jamais reconheceram qualquer prática tribal de organização social e sobre o Direito destes remanescentes de povos indígenas. No máximo, estas informações continham caráter experimental e secundário. Vale ressaltar que o mesmo ocorreu com a chegada de negros ao país para fomentar o mercado de mão de obra escrava. [11]

Com o crescimento dos primeiros povoados brasileiros, coube aos padres jesuítas não só a missão de evangelizar os nativos, mas também de organizar o meio social destas comunidades e aplicar meios coercitivos àquele que infringisse alguma conduta tipificada no Código Penal do Livro de Ordens da Companhia de Jesus. Um exemplo disto é o que ocorreu na missão jesuítica do Paraguai, onde a vingança privada não era permitida e o ofensor seria punido através de uma sanção penal previamente estabelecida no Código.

A legislação penal desta fase colonial era eivada de princípios religiosos, e não jurídicos propriamente ditos. Sob a influência do direito canônico, puniam-se atos praticados contra a moral, atos praticados contra os bons costumes e crimes praticados contra a fé e religião.

Os nativos nesta fase vão se deparar diante da idéia de culpa e de pecado, até então inexistente no imaginário indígena. O Cristianismo foi a principal forma utilizada pelos jesuítas para o controle dos hábitos destes grupos de indivíduos recém formados.[12]

Vale ressaltar uma vez mais que, com a utilização de escravos negros para fomentar a economia da colônia, também não era permitida e nem levada em consideração qualquer manifestação de crença, conhecimento ou cultura destas pessoas.

 

Vale, nesse contexto, outra referência extensa mas não menos, ilustrativa sobre o sistema de controle social e sobre a organização da Justiça missioneira, trazida pelo historiador Amo A. Kern, que destaca “nas Missões da Província Jesuítica do Paraguai, o Código Penal estava inserido no Livro de Ordens, onde se registravam todas as determinações que emanavam quer das autoridades da Companhia de Jesus, quer das próprias da administração espanhola. O Código Penal proibia as punições privadas, pois o castigo deveria servir como exemplo aos demais e assim também se impediam os excessos. O pior crime que se poderia cometer, o homicídio, era punido com prisão perpétua, não havendo pena de morte. Cada crime tinha estipulada a pena, não podendo jamais ser aumentada, mas somente diminuída, pois eram levadas em conta as boas disposições do culpado. (WOLKMER, 2003, p. 48)

 

A tutela dos indígenas, confiada aos jesuítas pelo rei e pelos governadores da colônia, era suficiente para lhes conferir autoridade para fixar e executar as penas, independentemente de possuírem autoridade judicial de jurisdição criminal. (WOLKMER, 2006, p. 284)

Para cada conduta delituosa havia uma sanção penal correspondente ao crime praticado, que variava normalmente de uma pena de prisão perpétua ou temporária, multa ou castigos físicos, sendo esta última forma de sanção criminal a mais usual em se tratando de índios e escravos negros apenados.

Alem do canibalismo, o homicídio ou suicídio ritual de homens, mulheres e crianças havia se generalizado nas três Américas, entre as diversas nações indígenas.

 

Devido à completa amoralidade e promiscuidade sexual em que se encontravam os guaranis, era permitido aos prisioneiros, enquanto eram engordados, (para serem comidos) ter relações com as mulheres da aldeia. Os filhos dessas uniões, chamados “cunhambiras”, eram destinados a ser devorados quando alcançassem um certo desenvolvimento. Sacrificavam-nos então, na presença do pai, que também era morto no mesmo dia. A mãe era a primeira a saborear a carne da vítima. O ritual do massacre durava cinco dias de cerimônia, bailes e bebedeira. Apenas acertado o golpe mortal na infeliz vítima, velhas mulheres precipitavam-se para recolher-lhe o sangue e os miolos num pote; o sangue então era bebido ainda quente. Se o morto tinha mulher, esta era a primeira a saborear a carne do esposo. (SALVADOR, 2006, p. 17)

 

Os castigos físicos eram realizados em praça pública, com a finalidade de reprimir a pratica de tais atos delituosos por outras pessoas. Um exemplo disto é o fato retratado pelo pintor Jean Baptiste Debret na ocasião de sua visita ao Brasil, aproximadamente em 1808, quando a sede da coroa portuguesa foi transferida para a colônia.

 

No caso colacionado abaixo, trata-se da punição dada a escravos reconhecidos pela legislação penal e pelo órgão julgador da época como criminosos:

 

O pintor Jean Baptiste Debret conta que, no Rio de Janeiro, escravos acusados de faltas graves, como fuga ou roubo, eram punidos com cinqüenta a duzentas chibatadas. Seu dono tinha de comparecer ao calabouço munido de autorização do intendente de policia na qual deveriam constar “o nome do delinqüente e o número de chibatadas que deverá receber”. O carrasco, encarregado de executar o castigo, recebia uma pataca por cem chibatadas aplicadas. Pataca era uma antiga moeda de prata no valor de 320 réis. “Todos os dias, entre 9 e 10 horas da manhã, pode-se ver a fila de negros que devem ser punidos”, escreveu Debret. “Eles vão presos pelo braço, dois em dois, e conduzidos sob escolta da polícia até o local designado para o castigo. Para este fim existem, em todas as praças mais freqüentadas da cidade, pelourinhos erguidos com o intuito de exibir os castigados. […] Depois de desamarrado (do pelourinho), o negro é deitado no chão, de cabeça para baixo, a fim de evitar-se a perda de sangue. A chaga escondida sob a fralda da camisa escapa assim à picada do enxame de moscas que logo procura esse horrível repasto. Finalmente, terminada a execução, os condenados ajustam as suas calças, e todos, dois por dois, voltam para a prisão com a mesma escolta que os trouxe. […] De volta à prisão, a vítima é submetida a uma segunda prova, não menos dolorosa: a lavagem das chagas com vinagre e pimenta, operação sanitária destinada a evitar a infecção do ferimento. (GOMES, 2010, p. 223)

 

Na fase imperial da história brasileira, fato que merece destaque é a situação do escravo diante da lei penal. Embora que diante do âmbito do direito civil o escravo não fosse considerado cidadão brasileiro, na esfera criminal era considerado sujeito capaz, respondendo plenamente por seus atos, na mesma forma que qualquer outro sujeito imputável. Mas, caso fosse o ofendido, “o mal a ele feito era considerado não dano, mas ofensa física (aplicando-se o dispositivo do artigo 201 do Código Criminal do Império, como aos homens livres), embora cabendo ao proprietário indenização civil, conforme estipulado nas Ordenações.” (WOLKMER, 2006, p, 339)

 

Os castigos

 

Nesse sentido, é importante destacar que foram os costumes, as crenças e os hábitos do colonizador branco que basearam predominantemente a formação do Direito no Brasil, em especial as leis e a realidade do sistema penal ainda vigente no país, sem levar em consideração a cultura dos nativos e do grande número de negros que predominaram durante a maior parte do tempo o território brasileiro. [13]

O objetivo do presente estudo não é verificar a evolução do direito penal brasileiro ao longo do tempo, mas analisar brevemente a tendência de vitimização do criminoso brasileiro diante do sistema carcerário pátrio. Apesar de a lei de execução penal brasileira prever institutos e princípios para a reeducação dos apenados e a reinserção destes na comunidade, a realidade nos presídios brasileiros contradizem estes preceitos.

Além da precariedade do sistema carcerário, a ineficiência da defesa processual de criminosos de baixa renda, a morosidade do judiciário e o próprio racismo e a ideologia de inferioridade em relação a algumas raças também fazem parte da triste realidade do regime penal brasileiro. Apesar de toda a evolução que recebeu a lei penal brasileira ao longo do tempo, é evidente no sistema criminal pátrio a ideologia histórica de inferioridade de determinadas pessoas, levando em consideração sua etnia ou condição social.

 

Em primeiro lugar, por um conjunto de razões ligadas à sua história e sua posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de “globalização”), e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades. […] A difusão das armas de fogo e o desenvolvimento fulminante de uma economia estruturada da droga ligada ao tráfico internacional, que mistura o crime organizado e a polícia, acabaram por propagar o crime e o medo do crime por toda a parte no espaço público. Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do subemprego crônicos continuará a buscar no “capitalismo de pilhagem” da rua (como diria MaxWeber) os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que não consegue escapar da miséria no cotidiano. O crescimento espetacular da repressão policial nesses últimos anos permaneceu sem efeito, pois a repressão não tem influência alguma sobre os motores dessa criminalidade que visa criar uma economia pela predação ali onde a economia oficial não existe ou não existe mais. (WACQUANT, 1999, p. 4-5)

 

Devido a soma dos problemas sociais que o Brasil vem enfrentando ao longo de sua história é inegável que a criminalidade é fruto do sistema, da desigualdade social e de um judiciário muitas vezes burocrático e ineficiente. Não se espera com isso atitudes paternalistas em relação aos apenados, pois também se verifica atualmente a crescente necessidade de leis mais severas e no rigor do cumprimento destas.

Ocorre que, embora o ordenamento jurídico brasileiro preveja que o condenado não somente pague pelos seus ilícitos cometidos diante da sociedade, mas que também seja reeducado para a sua reinserção no meio social, a realidade da maioria dos presídios brasileiros não está de acordo com este mandamento legal. Este fato vem contribuindo cada vez mais para o aumento da reincidência criminal e na própria apologia ao crime.

 

A TENDÊNCIA DE VITIMIZAÇÃO DO CRIMINOSO NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

 

A finalidade do Direito Penal na organização da sociedade

 

Entre as ramificações da ciência jurídica, é tarefa do direito penal descrever quais atos ou condutas são considerados impróprios na sociedade, tipificar através do ordenamento jurídico quais as atitudes que colocam em risco o direito à vida, à integridade física e do patrimônio das pessoas que formam todo o grupo social.

Além de descrever quais comportamentos são considerados ilícitos para os membros da nação brasileira, cabe ao direito penal cominar suas respectivas sanções, para o caso de alguém vir a desrespeitar os mandamentos ali contidos e estabelecer regras para a justa e correta aplicação da lei penal.

Por sua vez, a ciência penal possui importante caráter humanístico, já que ao explicar a razão, a essência e o alcance das normas jurídicas vai estabelecer também critérios objetivos para a sua correta aplicação, a fim de evitar a arbitrariedade nas condenações e conseqüentemente sanções injustas e desproporcionais e ainda coibir que sejam consideradas infrações penais condutas inofensivas.

 

O Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação. A ciência penal, por sua vez, tem por escopo explicar a razão, a essência e o alcance das normas jurídicas, de forma sistemática, estabelecendo critérios objetivos para sua imposição e evitando, com isso, o arbítrio e o casuísmo que decorreriam da ausência de padrões e da subjetividade ilimitada na sua aplicação. Mais ainda, busca a justiça igualitária como meta maior, adequando os dispositivos legais aos princípios constitucionais sensíveis que os regem, não permitindo a descrição como infrações penais de condutas inofensivas ou de manifestações livres a que todos têm direito, mediante rígido controle de compatibilidade vertical entre a norma incriminadora e princípios como o da dignidade humana. (CAPEZ, 2011, p. 19)

 

O Direito não é uma ciência natural e exata apesar de conter o ordenamento jurídico brasileiro normas positivadas. O Direito é uma ciência social e humana, pois tem a responsabilidade de lidar com condutas humanas nem sempre previsíveis, onde nem sempre é possível considerar a relação causa e efeito.

 

 

O estado penalizando

 

Este fato é constante principalmente na realidade dos magistrados brasileiros, que precisam socorrer-se de argumentos doutrinários e jurisprudenciais para analisar cada caso individualmente, para determinadas situações em que somente o respaldo da letra fria da lei não é suficiente para a justa e equilibrada condenação de um delinqüente e a posterior imposição de uma sanção penal proporcional ao delito cometido. [14]

Cabe ao Estado determinar regras e codificar normas a fim de organizar o convívio das pessoas em sociedade, com o objetivo de manter a paz e garantir a proteção dos bens jurídicos de importante valor, garantidos em nossa Carta Magna. Ao ter alguma destas regras desrespeitadas diante da prática e consumação do delito, surge no mesmo instante para o Estado, na pessoa de um magistrado, o direito de punir, de aplicar uma sanção penal ao infrator da norma jurídica.

Em contrapartida, a imposição da sanção penal não se dará de forma arbitrária, sendo necessário e obrigatório que o Estado conceda ao acusado a oportunidade de defesa e que os órgãos responsáveis pela investigação criminal que, no Brasil é tarefa incumbida a policia judiciária e também ao Ministério Público, obtenham provas concretas para uma possível condenação do réu. Caso condenado, será dado início por impulso processual do próprio Estado a fase de execução penal, ocasião em que o apenado pagará diante da sociedade pela prática de um ou mais atos proibidos por imposição legal, mediante uma sanção penal imposta pelo próprio Estado.

 

O Estado, ente soberano que é, tem o poder de ditar as regras de convivência e, para isso, pode aprovar normas que tenham por finalidade manter a paz e garantir a proteção aos bens jurídicos considerados relevantes: vida, incolumidade física, honra, saúde pública, patrimônio, fé pública, patrimônio público, meio ambiente, direitos do consumidor etc. Essas normas, de caráter penal, estabelecem previamente punições para os infratores. Assim, no exato instante em que ela é desrespeitada pela prática concreta do delito, surge para o Estado o direito de punir (jus puniendi). Este, entretanto, não pode impor imediata e arbitrariamente uma pena, sem conferir ao acusado as devidas oportunidades de defesa. Ao contrário, é necessário que os órgãos estatais incumbidos da persecução penal obtenham provas da prática do crime e de sua autoria e que as demonstrem perante o Poder Judiciário, que, só ao final, poderá declarar o réu culpado e condená -lo a determinada espécie de pena. (LENZA, 2012, p. 31)

 

Não basta que a atuação do Estado se dê apenas de forma a delimitar o comportamento de seus subordinados a fim de evitar agressões e o caos na sociedade. É necessário também que a própria prestação jurisdicional seja eficiente, ágil e que estabeleça aos jurisdicionados um fácil acesso aos seus serviços, inclusive ao que praticou um ato reconhecido como crime através de uma previsão legal.

Um Poder Judiciário omisso, moroso e ineficiente contribui para a desvalorização do povo para com a instituição. A descrença que o Direito Penal tem poder de servir como meio de incutir na sociedade valores éticos e morais contribui para o aumento da criminalidade, diante da idéia de que cometer crimes, mesmo que como única fonte de subsistência, vale à pena. [15]

 

A influência do estado na aplicação da pena

 

Para que o apenado cumpra com êxito a sanção criminal imposta em face do delito cometido e seja reintegrado à vida social com uma chance mínima de reincidência, o Estado tem o dever de fornecer condições carcerárias para isto, o que infelizmente não ocorre em grande parte das penitenciárias brasileiras. Celas com número de pessoas que ultrapassam em muito o limite permitido, a falta de condições de higiene, má alimentação e a ausência de atividades socieductivas são alguns dos exemplos da realidade carcerária no Brasil.

Os maus tratos dos detentos por parte dos agentes prisionais e a violência entre os próprios apenados tem sido alvo, inclusive, de ondas de violência urbana em alguns estados brasileiros, a exemplo do que ocorreu no presídio de São Pedro de Alcântara, no estado de Santa Catarina. No decorrer dos primeiros meses deste ano de 2013, várias cidades do Estado foram alvo de ondas de violência por parte de outros criminosos e parentes destes presidiários, em represália a denúncias de maus tratos ocorridos neste complexo penitenciário.[16]

Os maus tratos contra os detentos dentro das próprias penitenciárias é apenas um dos exemplos que torna o sistema carcerário brasileiro ineficiente em cumprir com a sua missão de fazer com que o apenado cumpra sua sanção penal imposta pelo Estado e receba condições de retornar ao seio de sua comunidade com a mínima chance de reincidência. Além de ser uma condição comprovadamente ineficaz para reeducar o agente criminoso, as condições subumanas dos cárceres brasileiros provocam indignação em toda a sociedade.

 

A pena intimidadora

 

O Direito Penal possui um importante papel na organização da sociedade, através da qual, pelas normas estabelecidas pelo legislador, se impõe certo receio nas pessoas com a finalidade de intimidar todos os participantes do grupo social de praticar determinados atos e, além disto, é uma hábil oportunidade que possui o Estado de celebrar com os seus administrados a observância dos compromissos éticos e morais em respeito e obediência às normas impostas pela lei. [17]

No entanto, para que os princípios e normas do Direito Penal consigam infundir nas pessoas a convicção e necessidade de se fazer justiça simplesmente pelo crédito aos valores éticos e morais propagados pela legislação, e não propriamente pelo receio de se receber uma condenação criminal, é preciso que estas tenham condições de visualizar o comprometimento da lei para com a segurança pública do país na prática.

 

Ao ressaltar a visão puramente pragmática, privilegiadora do resultado, despreocupada em buscar a justa reprovação da conduta, o Direito Penal assume o papel de mero difusor do medo e da coerção, deixando de preservar os valores básicos necessários à coexistência pacífica entre os integrantes da sociedade política. A visão pretensamente utilitária do direito rompe os compromissos éticos assumidos com os cidadãos, tornando-os rivais e acarretando, com isso, ao contrário do que possa parecer, ineficácia no combate ao crime. Por essa razão, o desvalor material do resultado só pode ser coibido na medida em que evidenciado o desvalor da ação. Estabelece-se um compromisso de lealdade entre o Estado e o cidadão, pelo qual as regras são cumpridas não apenas por coerção, mas pelo compromisso ético-social que se estabelece, mediante a vigência de valores como o respeito à vida alheia, à saúde, à liberdade, à propriedade etc. (CAPEZ, 2011, p. 20)

 

No Brasil, a responsabilidade pela manutenção do sistema carcerário cabe ao Poder Executivo, e não ao Judiciário a quem foi dada a responsabilidade de julgar e condenar os participantes do grupo social que descumprirem as limitações imposta na lei. Ocorre que, diante da realidade propagada principalmente pela mídia, concluem os leigos que os problemas sociais do país envolvendo a alta taxa de criminalidade se devem, entre tantos argumentos, a ausência de leis mais severas e à ineficiência do Judiciário.

Este fato, entre outros, contribui para que o criminoso no Brasil seja visto como vítima de um sistema carcerário incapaz de proporcionar uma nova reinserção do apenado na sociedade, sem que este possa achar atraente voltar à criminalidade. Ineficiente também, em impelir que cada vez mais crianças e adolescentes façam sua iniciação no obscuro mundo da marginalidade.

 

A tendência de vitimização do criminoso no sistema carcerário brasileiro

 

Antes de discorrer sobre o mérito do presente estudo, necessário se faz tratar da questão envolvendo da acessibilidade à justiça aos réus e apenados. Sabe-se que tanto a Carta Magna brasileira quanto a legislação penal estabelecem muitas garantias processuais para que os acusados recebam tratamento isonômico e imparcial no decorrer da lide. Na prática, estas garantias vão se manifestar na possibilidade de o acusado vir a receber o acompanhando de um advogado que irá realizar sua defesa no âmbito processual.

A própria lei penal dispõe que para o réu revel e ao que carecer de condições de patrocinar um causídico com recursos próprios, que o magistrado lhe nomeie um defensor público, que irá realizar a defesa processual deste réu ou apenado de forma remunerada pelo Estado.

No entanto, sabe-se que no Brasil não há número de defensores dativos suficiente para atender a demanda, fato que contribui para que muitos apenados sem condições financeiras de pagar os honorários de um advogado particular fiquem mais tempo encarcerados do que o prazo limite que foi fixado para a pena de detenção na decisão judicial.

 

Os primeiros esforços importantes para incrementar o acesso à justiça nos países ocidentais concentram-se, muito adequadamente em proporcionar serviços jurídicos para os pobres. Na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado é essencial, senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e procedimentos misteriosos, necessários para ajuizar um causa. Os métodos para proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso mesmo, vitais. Até muito recentemente, no entanto, os esquemas de assistência judiciária da maior parte dos países eram inadequados. Baseavam-se, em sua maior parte, em serviços prestados pelos advogados particulares, sem contraprestação (munus honorificum). O direito ao acesso foi, assim, reconhecido e se lhe deu algum suporte, mas o Estado não adotou qualquer atitude positiva para garanti-lo. De forma previsível, o resultado é que tais sistemas de assistência judiciária eram ineficientes. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 15)

 

A ausência de um programa de assistência judiciária digna e eficaz para o acompanhamento e defesa processual do cidadão, mesmo que este tenha praticado atos defesos em lei, vai ao encontro da morosidade do judiciário brasileiro, onde é comum em muitos casos a prescrição da pretensão punitiva antes mesmo da condenação do acusado. A morosidade do Poder Judiciário e sua incapacidade de propagar à sociedade uma ideologia de respeito à moral, à ética, aos bons costumes e à própria lei faz com que os magistrados e demais participantes da justiça sejam vistos como coniventes com a marginalidade.

No Brasil, para a maior parte da população a Justiça possui a imagem de ser tolerante com os criminosos, parece demonstrar que as sanções penais são brandas, o que faz com que muitos manifestem o pensamento de que o sistema dá margem à imputabilidade. O que não deixa de ser verdade se levado em consideração as penais impostas aos crimes geralmente cometidos por pessoas que se encontram à margem da sociedade, muitas vezes delitos com caráter famélico, em face dos crimes cometidos por aqueles que detêm o Poder, os popularmente conhecidos “crimes de colarinho branco” e suas penas insignificantes.

A morosidade do judiciário, a evidente desproporção das sanções penais em relação aos delitos tipificados na lei, entre outros fatores que caracterizam o atual sistema jurídico e carcerário brasileiro, são fatos que favorecem o aparecimento dos justiceiros com a primitiva intenção de fazer justiça com as próprias mãos, situações que acrescentam pontos à estatística criminal, ao aumento do número de violência nas cidades e dentro dos próprios presídios e induzem o indivíduo à reincidência da prática delituosa.

 

A propósito, o desinteresse flagrante e a incapacidade patente dos tribunais em fazer respeitar a lei encorajam todos aqueles que podem buscar soluções privadas para o problema da insegurança – barricadas em “bairros fortificados”, guardas armados, “vigilância” tolerada, e até encorajada, por parte dos justiceiros e das vítimas de crimes -, o que tem por principal efeito propagar e intensificar a violência. Pois, a despeito do retorno à democracia constitucional, o Brasil nem sempre construiu um Estado de direito digno do nome. As duas décadas de ditadura militar continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as mentalidades coletivas, o que faz com que o conjunto das classes sociais tendam a identificar a defesa dos direitos do homem com a tolerância à bandidagem. De maneira que, além da marginalidade urbana, a violência no Brasil encontra uma segunda raiz em uma cultura política que permanece profundamente marcada pelo selo do autoritarismo. (WACQUANT, 1999, p. 6)

 

O sistema criminal brasileiro dá margem também para o surgimento de justiceiros e desentendimentos ideológicos entre os próprios estudiosos e doutrinadores do Direito, situação impulsionada principalmente pelas contradições que constam nas leis penais. Um fato bem recente que se enquadra perfeitamente nesta situação foi a atuação do Ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro, por ocasião do julgamento dos réus envolvidos no esquema da organização criminosa que ficou conhecida popularmente por Mensalão.

 

Contradições recentes no mundo jurídico brasileiro

 

As contradições e obscuridades que constam na legislação penal brasileira abalam não só a estrutura do Poder Judiciário diante da desmoralização da instituição, mas colocam em risco os direitos e as garantias legais de todos os cidadãos, principalmente dos réus e apenados pobres. Um fato que comprova esta linha de raciocínio é que após aproximadamente oito anos de julgamento e discussões envolvendo o cabimento ou não de mais um recurso processual, os réus do caso Mensalão continuam sem pagar diante da sociedade pelos delitos que cometeram o que vem ocasionando indignação em toda a população. [18]

Apesar de a legislação brasileira proibir veementemente, através, inclusive, de dispositivo constitucional, sanções penais com doses de violência física como a tortura e a pena de morte, a atuação da polícia nas ruas e dos agentes penitenciários de dentro dos presídios agravam o aparente irremediável caos na área da segurança pública no país. Outro fato que infelizmente contribui em muito para a crescente onda de violência por todo o território brasileiro é o uso de força e violência nas atuações das policias, tanto civil (policia judiciária) quanto militar.

 

Reações da sociedade brasileira moderna

 

São corriqueiras as manchetes jornalísticas envolvendo este tipo de procedimento nas atuações policias, mesmo quando cabe a estes profissionais apenas acompanhar e organizar manifestações pacíficas, por exemplo. A cada incursão da policia nas favelas dos grandes centros urbanos brasileiros morrem em combate criminosos, os próprios policiais e inocentes moradores destas áreas perigosas que não possuem qualquer envolvimento com a marginalidade.

A instituição responsável pela manutenção da ordem e paz social, muitas vezes é a causa do aumento de violência em locais considerados de risco, onde os moradores destas áreas vivem em condições subumanas e a prática de delitos muitas vezes é realizada com a finalidade de promover a subsistência do grupo familiar, o que é um fato vergonhoso para um país que detém uma das primeiras posições no ranking da economia mundial.

 

Depois, a insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem. O uso rotineiro da violência letal pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte da polícia civil (através do uso da “pimentinha” e do “pau-de-arara” para fazer os suspeitos “confessarem”), as execuções sumárias e os “desaparecimentos” inexplicados geram um clima de terror entre as classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade no seio do Estado. Uma estatística: em 1992, a polícia militar de São Paulo matou 1.470 civis – contra 24 mortos pela polícia de Nova York e 25 pela de Los Angeles -, o que representa um quarto das vítimas de morte violenta da metrópole naquele ano. É de longe o recorde absoluto das Américas. Essa violência policial inscreve-se em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta contra a “subversão interna” se disfarçou em repressão aos delinqüentes. Ela apóia-se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre feras e doutores, os “selvagens” e os “cultos”, que tende a assimilar marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem. (WACQUANT, 1999, p. 5)

 

Coincidentemente, uma vez mais se vislumbra o histórico preconceito étnico e racial também nas atuações da polícia. Em um país onde políticos corruptos se livram de condenações penais graças à inimputabilidade que proporciona a própria “Justiça”, parece haver lugar nas lúgubres penitenciárias brasileiras somente os pobres, “pretos” e prostitutas. Com isso, há um dizer bastante conhecido por aqui: No Brasil, cadeia somente para os três “pês”.

Diante de tantos fatos que tornam ineficientes o sistema penal brasileiro, sem dúvidas, o que mais contribui para esta triste realidade é a situação de grande parte das penitenciárias do país. Em nada se parecem com um local com a importante tarefa de reeducar o ser humano com desvios de conduta para a sua saudável reinserção na sociedade.

O relato colacionado abaixo descreve perfeitamente a situação lúgubre e em condições desumanas das penitenciárias em todo o território brasileiro:

 

Uma última razão, de simples bom senso, milita contra um recurso acrescido ao sistema carcerário para conter a escalada da miséria e dos distúrbios urbanos no Brasil. É o estado apavorante das prisões do país, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica – dissuasão, neutralização ou reinserção. O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levadas a uma escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do público: entupimento estarrecedor dos estabelecimentos, o que se traduz por condições de vida e de higiene abomináveis, caracterizadas pela falta de espaço, ar, luz e alimentação (nos distritos policiais, os detentos, freqüentemente inocentes, são empilhados, meses e até anos a fio em completa ilegalidade, até oito em celas concebidas para uma única pessoa, como na Casa de Detenção de São Paulo, onde são reconhecidos pelo aspecto raquítico e tez amarelada, o que lhes vale o apelido de “amarelos”); negação de acesso à assistência jurídica e aos cuidados elementares de saúde, cujo resultado é a aceleração dramática da difusão da tuberculose e do vírus HIV entre as classes populares; violência pandêmica entre detentos, sob forma de maus-tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos, em razão da superlotação super acentuada, da ausência de separação entre as diversas categorias de criminosos, da inatividade forçada (embora a lei estipule que todos os prisioneiros devam participar de programas de educação ou de formação) e das carências da supervisão. (WACQUANT, 1999, p. 7)

 

Se as condições de vida dentro de um cárcere brasileiro é semelhante a jaula de um animal em grande parte dos estabelecimentos prisionais, a situação é ainda mais crítica se quem tiver pagando por seus erros perante a sociedade for mulher. Em todo o país há apenas um número aproximado de cinqüenta e três penitenciárias específicas para receber mulheres.

Celas em condições lúgubres e precárias, contendo um número bem maior que o seu limite permitiria, a ausência de distribuição de refeições adequadas, a proliferação de vírus e doenças principalmente sexuais representam um pouco do cotidiano dos detentos brasileiros, independentemente do seu gênero e opção sexual. A situação torna-se mais premente no caso das mulheres que necessitam de tratamento especial, principalmente de acompanhamento médico durante a gestação, já que perante o descaso do Poder Executivo, responsável pela construção e manutenção das casas de detenção, não há necessidade de se levar em conta tais especificidades, ou seja, para o governo brasileiro presidiário é um ser somente, sem a definição de ser um homem ou uma mulher. [19]

Denúncias de violência sexual entre os detentos sejam entre homens ou entre mulheres e a violência física contra apenados homossexuais são constantes. No Brasil, a lei resguarda a integridade física dos apenados que estão encarcerados, mas esta garantia conferida aos que se encontram privados de seu direito de ir e vir não é suficiente para que o Estado promova atitudes com a finalidade de coibir tais violências.

Com a intenção de evitar a violência e agressões entre os detentos dentro dos presídios por causa dos atos relacionados ao preconceito contra o homossexualismo, o governo do estado brasileiro da Paraíba tomou uma atitude inédita em todo o país. Aos poucos, todos os presídios da região vão contar com alas exclusivas para detentos gays, lésbicas, bissexuais, e travestis. Esta atitude do governo paraibano exalta os preceitos relacionados aos Direitos Humanos e às garantias e princípios fundamentais que pertencem a todos os indivíduos e ainda faz com que o Estado cumpra com a sua obrigação de proteger a integridade física dos detentos.

 

Presos gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis da Paraíba têm à disposição desde o início do mês alas exclusivas nos três principais presídios do Estado. A medida, inédita no país, foi adotada após denúncias de abusos sexuais e violência física e psicológica, principalmente contra os travestis. Os abusos foram denunciados pela Comissão Estadual de Direitos Humanos, que constatou casos de violência em vistorias em maio e junho. Numa primeira etapa, dois presídios em João Pessoa e outro em Campina Grande, no interior do Estado, ganharam essas alas separadas. Cerca de 40 presos já solicitaram ingresso aos setores. Segundo o secretário de Administração Penitenciária, Walber Virgolino, a proposta é levar o projeto a todos os presídios (18 penitenciárias e 61 cadeias públicas) até o próximo ano, inclusive com a construção de pavilhões exclusivos. “As pessoas têm o direito de escolher com quem querem se relacionar. Precisávamos acabar com essas violações”, afirma o secretário. O presidente da comissão da diversidade sexual da seção local da OAB, José de Melo Neto, diz que o novo sistema possibilita “tratamento humanizado” aos presos. Integrante dessa comissão do governo do Estado e presidente de entidade LGBT, Renan Palmeira afirma que a iniciativa é um avanço. “Com a ala separada, eles ganham cidadania e respeito. Passam a ser tratados pelo nome social e a ter direitos antes negados, como visitas íntimas.” O advogado especialista em criminalística Sheyner Asfora disse que a iniciativa é importante, mas expõe a falta de controle estatal.”Isso deixa claro que quem determina as regras nos presídios são os próprios presos.” (DE LUCCA, 2013)

 

Conclusão

 

Diante dos fatos até aqui narrados, é nítida a crescente tendência de vitimização do criminoso diante da atual situação do sistema carcerário brasileiro, já que o Estado não oferece condições dignas para a reeducação social do delinqüente. Fato este que, somado aos inúmeros problemas sociais que o país possui, vem contribuindo para desvalorização dos princípios morais e éticos da grande massa da população fomentando a prática de crimes, inclusive entre crianças e adolescentes. A crítica situação do sistema carcerário brasileiro não só dá margem para o aumento da criminalidade e da oportunidade de reincidência, mas marca certo retrocesso do próprio Direito Penal, pois dá margem para a prática de atos da antiga forma de vingança privada.

Outrossim, importante salientar a necessidade de normas penais mais rígidas e eficazes afim de evitar a prática e a reincidência delituosa e uma maior efetividade dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no combate à criminalidade. Caso contrário, quem é bandido continuará a ser considerado como vítima de nossa realidade social e jurídica, encurralando para as margens da sociedade as pessoas de bem e observadoras dos preceitos legais e morais.

 

REFERÊNCIAS

 

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DE LUCCA, William. Presídios na Paraíba têm alas exclusivas para homossexuais. Folha de São Paulo online. Acesso em agosto de 2013.

 

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Aqui o estrado para os teus pés, que repousam aqui, onde vivem os mais pobres, mais humildes e perdidos.

Quando tento inclinar-me diante de ti, a minha reverencia não consegue alcançar a profundidade onde os teus pés repousam, entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.

O orgulho nunca pode se aproximar desse lugar onde caminhas com as roupas do miserável, entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.

O meu coração jamais pode encontrar o caminho onde fazes companhia ao que não tem companheiro, entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.

 

Tagore, citado na introdução da Bíblia Sagrada – Edições Paulinas – São Paulo, 1990.

 


[1] O direito surge com o aparecimento do homem na terra e com a fixação do homem ao solo. Afirmamos que após esse fenômeno, toda a conflituosidade passa a existir. O homem que vive em uma ilha, isolado, não possui conflitos, nenhum laço o une, quer em relação ao solo, quer em relação a qualquer coisa. Posteriormente, com a agregação de vários grupos, o fenômeno da civilização acontece, e podemos afirmar que nasce verdadeiramente um conjunto de direitos que mais tarde chamaremos de Direito Positivo. Este acompanhará o ser humano, onde quer que vá. (COSTA, 2007, p. 26)

[2] Preliminarmente, necessário se faz distinguir dois momentos: a pré-história do Direito e a história do Direito, distinção esta que tem por base o conhecimento ou não da escrita. O aparecimento da escrita e, em conseqüência, dos primeiros textos jurídicos, situa-se em épocas diferentes para as diversas civilizações. […] As origens do Direito situam-se na época pré-histórica, o que significa que delas quase nada se sabe. (ROMÃO; CAVALCANTI; KOGAN, 2003, p. 35-36)

[3] Vale ressaltar que não são propriamente Códigos, no sentido próprio do termo; são sobretudo recolhas de textos jurídicos agrupados de forma sistemática. Tais textos não parecem sequer leis, mas julgamentos de Direito, ensinamentos indicando o caminho aos juízes. Cada frase, em regra breve, diz respeito a um caso concreto e dá a solução jurídica. Logo, a natureza jurídica destes códigos é jurisprudencial. Contudo, não se pode negar que esses códigos constituem os primeiros esforços da humanidade para formular regras de Direito. (ROMÃO; CAVALCANTI; KOGAN, 2003, p. 48)

[4] O estudo da história do Direito Romano é relevante para os dias atuais, posto que o direito praticado e aplicado no Brasil, ‘sofreu’e ‘sofre’influências romanistas. Esse direito é a base de vários conceitos e institutos da atualidade. Podemos afirmar que foi o direito que, com suas normas jurídicas, vigorou em Roma. (COSTA, 2007, p. 36)

[5] A pena, nada mais significava do que vingança, com o intuito de revidar a agressão sofrida. A preocupação em castigar não se dava pelo sentimento de ofensa a pessoa que sofreu a agressão e sim pela preocupação em se fazer justiça. Portanto, a influência religiosa na vida dos cidadãos e membros da comunidade era muito forte e preponderante. As leis eram interpretadas pelos sacerdotes e membros religiosos do grupo e davam um caráter sobrenatural aos acontecimentos. Nesse período, o sacerdote tinha uma função dupla, interpretava e aplicava a lei. (COSTA, 2007, p. 31)

[6] Sob esse aspecto no campo criminal: quando um crime era cometido, ocorria a reação não só da vítima como de seus familiares e também de toda a sua tribo: a ação contra o ofensor era tão desmedida que não se destinava só ao infrator, mas a todo o seu grupo. Já se o transgressor fosse membro da tribo, poderia ser expulso e ficava à mercê dos outros grupos, o que acabaria resultando em morte. (COSTA, 2007, p. 31)

[7] Para se evitar a dizimação dos povos, surge o Talião que limita a reação à ofensa a um mal idêntico ao praticado. Interpretar a lei historicamente é importante para não se cometer erros. Para a época, o Talião representou um grande avanço, visto que dava uma certa proporcionalidade a ofensa praticada pelo inimigo. Talvez o princípio da proporcionalidade, aplicada ao crime e a pena como decorrente deste, esteja justamente na lei de Talião, embora não seja citada. (COSTA, 2007, p. 32)

[8] Em Roma, no que tange ao aspecto da aplicação da justiça criminal tivemos as fases da vingança, dividindo esta em vingança privada e vingança divina, e mais adiante com a composição, a fase da vingança divina é retratada na época da Realeza, separando-se direito de religião. A lei criminal romana conheceu, no auge de seu desenvolvimento, três espécies de pena: corporais, infamantes e pecuniárias. No tempo do Império, a pena de multa era a mais frequente quanto aos crimes comuns. (COSTA, 2007, p. 45)

[9] Os delitos são divididos em crimina pública, ou seja, isso ficava a cargo do Estado, representado pelo magistrado com poder de Imperium com a função de garantir a segurança pública; e delicta privata, que consistiam em infrações menos graves, quando a função de reprimir caberia ao particular ofendido, havendo a interferência estatal apenas para regular seu exercício. (COSTA, 2007, p. 46)

[10] É certo que as matrizes teóricas utilizadas pelos nossos juristas e operadores do sistema penal provêm do pensamento primeiro-mundista, inclusive o núcleo dos apontamentos críticos para a superação de discursos obsoletos nesta área. Mas também é certo que só aqui, no mundo periférico, estes saberes adquiriram um caráter extremamente peculiar e cruel, implicando uma prática de extermínio em massa e de segregação social em escalas sem precedentes. Na verdade, como assinalou o jurista argentino, o sistema teórico latino-americano na área penal é de um sincretismo assombroso, que, no fundo, esconde um discurso extremamente racista, de natureza psicobiológica e de exclusão, ou, como diria o filósofo argentino Enrique Dussel, de “ocultamento do outro”. (WOLKMER, 2006)

[11] Naturalmente, a legalidade oficial imposta pelos colonizadores nunca reconheceu devidamente como Direito as práticas tribais espontâneas que organizaram e ainda continuam mantendo vivas algumas dessas sociedades sobreviventes. Vale dizer que o máximo que a justiça estatal admitiu, desde o período colonial, foi conceber o Direito indígena como uma experiência costumeira de caráter secundário. (WOLKMER, 2003, p. 47)

[12] O direito penal nas missões também recebeu influência do direito canônico nas questões relativas à moral e aos “bons costumes”, e nos crimes praticados contra a fé e a religião (heresia, feitiçaria, sacrilégio, apostasia e outros). Os demais atos imputados como crime, e o sistema de sanções introduzido nas reduções têm sua origem no direito castelhano. (WOLKMER, 2006, p. 282)

[13] Foram os valores e crenças trazidos pelos brancos colonizadores que predominaram na formação cultural brasileira, havendo, em conseqüência, a retração das culturas indígena e negra. Como, também, eram os colonizadores que detinham a exploração das riquezas, essa soma de fatores fez com que o direito do português, que legitimava aquele estado de coisas, imperasse de forma soberana. (WOLKMER, 2006, p. 304)

[14] Após inúmeros debates ao longo da história envolvendo a possibilidade de se enquadrar o Direito como uma ciência natural e exata entrelaçado com os ideais do positivismo, hoje é incontestável que o Direito finalmente alcançou seu status de ciência social e humana. “Esse prejudicial raciocínio tornou viável a sustentação de que o raciocínio e a lógica jurídica obedecem ao mesmo grau de certeza dos saberes naturais, que se estrutura a partir das categorias da causa e do efeito.” (BITTAR, ALMEIDA, 2005, p. 44)

[15] Por outro lado, na medida em que o Estado se torna vagaroso ou omisso, ou mesmo injusto, dando tratamento díspar a situações assemelhadas, acaba por incutir na consciência coletiva a pouca importância que dedica aos valores éticos e sociais, afetando a crença na justiça penal e propiciando que a sociedade deixe de respeitar tais valores, pois ele próprio se incumbiu de demonstrar sua pouca ou nenhuma vontade no acatamento a tais deveres, através de sua morosidade, ineficiência e omissão. (CAPEZ, 2011, p. 20)

[16] O caso passou a ser investigado após a divulgação de um vídeo, no qual agentes armados e vestidos de preto atiraram balas de borracha e bombas de efeito moral em detentos, que estavam organizados em fila, sem roupa, ajoelhados e com a cabeça virada para a parede. Segundo o Deap, todos os agentes envolvidos foram afastados. Após a divulgação, a Secretaria de Estado de Segurança Pública catarinense afirmou que o caso pode estar relacionado com a onda de ataques no estado. (PASTORAL CARCERÁRIA)

[17] A missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade etc., denominados bens jurídicos. Essa proteção é exercida não apenas pela intimidação coletiva, mais conhecida como prevenção geral e exercida mediante a difusão do temor aos possíveis infratores do risco da sanção penal, mas sobretudo pela celebração de compromissos éticos entre

o Estado e o indivíduo, pelos quais se consiga o respeito às normas, menos por receio de punição e mais pela convicção da sua necessidade e justiça. (CAPEZ, 2011, p. 19)

[18] Durante a palestra, Jacinto ainda condenou o sistema penal brasileiro por dar espaço ao surgimento de justiceiros, como a do ministro Joaquim Barbosa, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que em sua visão, prestam um “desserviço” a sociedade, e por serem altamente moralistas. “Boa parte deles acham que estão fazendo algo de bom, mas na verdade estão fazendo algo de mau. São eles que seguram a situação como está, e enquanto estiver assim, segue sendo discriminatória. E o resultado desta prática é o que vemos nas penitenciárias, e quem está nas penitenciárias?”, analisa. O erro dos justiceiros, segundo Coutinho, é por atropelar todos os meios legais para instaurar um processo, sob o argumento de que os “fins justificam os meios”. Em seu entendimento, a desordem do CPP, e a forma como os processos são conduzidos, pode colocar em risco os direitos e garantias dos cidadãos, principalmente os mais pobres e vulneráveis. Coutinho – que integrou a comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de reforma do CPP, que agora tramita como projeto de lei na Câmara dos Deputados – afirma que a reforma não é perfeita, mas está em maior consonância com a Constituição Brasileira, mas agora enfrenta a falta de vontade política para aprovar o texto, por ampliar o leque das garantias e direitos das pessoas nos tramites do processo penal. (Bahia Notícias, 2013)

[19] Em 2012, durante a Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o Brasil foi repreendido por desrespeitar os direitos humanos em seu sistema carcerário, especialmente por ignorar questões de gênero. Ou seja, é internacionalmente reconhecido que o sistema penitenciário feminino brasileiro é inadequado. O poder público parece ignorar que está lidando com mulheres e oferece um “pacote padrão” bastante similar ao masculino, nos quais são ignoradas a menstruação, a maternidade, os cuidados específicos de saúde, entre outras especificidades femininas. É até mesmo difícil dizer exatamente quantos locais abrigam detentas no Brasil hoje, já que muitas delas são mantidas em delegacias de polícia e carceragens superlotadas e com estrutura inadequada Brasil afora. Em dezembro de 2012, porém, um levantamento do Ministério da Justiça apontou que existiam 53 penitenciárias, 4 colônias agrícolas, 7 casas de albergados, 9 cadeias públicas e 5 hospitais de custódia (para presas com problemas mentais) no país. (GELEDES, 2013)