A TENDÊNCIA DE VITIMIZAÇÃO DO CRIMINOSO NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO
INTRODUÇÃO
Quando o primeiro Homem branco aportou em solo americano há mais de
quinhentos anos, este território já se encontrava totalmente povoado por inúmeras tribos de
povos nativos, onde cada um desses agrupamentos vivia de forma autônoma uns dos outros
e possuíam sua própria forma de organização social. Além da pluralidade de povos nativos
que aqui viviam, o continente recebeu ao longo de sua história várias etnias, notadamente no
Brasil, o que caracterizou esta nação como heterogênea.
Durante toda a fase colonial do continente americano, não era importante aos
interesses da metrópole europeia a organização social das colônias, que eram formadas
em sua grande maioria por nativos, escravos negros, náufragos e degredados. Este fato
deu origem aos inúmeros problemas sociais enfrentados pelo diversos países americanos
durante todo o seu percurso histórico até os dias atuais. Aliás, a falta de comprometimento
dos responsáveis pelos governos destes países com o bem estar social infelizmente ainda é a
realidade que o povo latino-americano enfrenta.
O descaso político e social para com a grande massa da população brasileira, por
exemplo, não sofreu alteração nem mesmo com a mudança da família real portuguesa de
Lisboa ao Rio de Janeiro em 1808. Em se tratando particularmente do desenvolvimento do
Direito Penal no Brasil, nota-se nesta fase, leis e decisões judiciais eivadas de preconceito
racial e étnico, onde negros, nativos, mulatos e mestiços recebiam duras sanções penais,
normalmente caracterizadas por violência física e sem nenhuma proporcionalidade entre o
delito cometido e a pena recebida pelo autor da infração penal.
É cada vez mais crescente a onda de criminalidade no Brasil, onde a falta de
segurança pública se tornou a maior preocupação no cotidiano dos brasileiros. O Poder
Judiciário é visto pelo povo como inerte, moroso. A atuação da polícia nas ruas tem dado
grande margem a críticas contra a instituição. O sistema carcerário brasileiro não é capaz de
cumprir com o principal objetivo da lei de execução penal: sociabilizar e reeducar o indivíduo
para a sua nova inserção no convívio social.
Problemas sociais relacionados à falta de condições de vida digna e com
qualidade é a principal porta de entrada para a marginalidade. A estatística criminal vem
aumentando a cada dia que passa, agora sob o embalo do tráfico de drogas. O que até pouco
tempo atrás era a realidade somente dos grandes centros urbanos, agora também se estende
a população das pequenas cidades do interior que igualmente também vivem em estado de
alerta, receosas com a crescente onda de violência fomentada principalmente pelo uso e
comercialização de drogas ilícitas.
Entre tantos problemas sociais presentes na realidade de grande parte da
população brasileira, o que se tornou alvo de iminente preocupação é a questão envolvendo
a segurança pública, onde os meios repreensivos da força policial e o sistema carcerário são
insuficientes e precários no combate ao crime e ressocialização do apenado. Infelizmente, em
muitos casos tem sido comum a polícia ser vista como inimiga pela população, e não como
órgão de segurança propriamente dito, responsável pela proteção das pessoas de bem.
Esta situação possui raiz histórica, faz parte não só do percurso histórico do
Brasil, mas também da própria formação do Direito Penal pátrio. Apesar de que atualmente
toda a legislação brasileira está alicerçada principalmente nos princípios de Igualdade
e Equidade, a verdade é que as decisões judiciais e a realidade do sistema carcerário
brasileiro ainda são eivadas do preconceito histórico onde as sanções penais mais severas e o
enclausuramento em celas com tratamento subumano parecem só ter cabimento aos pobres e
negros. Infrações penais popularmente conhecidas por “crime de colarinho branco” possuem
penas pífias, onde muitas vezes o apenado nem sequer recebe detenção.
Este fato faz com que o criminoso no Brasil seja visto como vítima do nosso
próprio sistema, principalmente diante das informações propagadas pela mídia. Notícias de
maus tratos de agentes penitenciários contra detentos e as condições de vida precária nestes
estabelecimentos, ou ainda, as violentas incursões da polícia nas favelas das grandes cidades
são manchetes corriqueiras.
Não se deseja com isto desmoralizar os bons costumes e os preceitos éticos e
morais da nação, mas é preciso urgentemente um sistema carcerário no Brasil onde o apenado
cumpra diante da sociedade a sanção penal imposta pelo Estado ante ao delito cometido, mas
que também receba condições reais de voltar a viver no seio de um ambiente coletivo com
mínimas chances de voltar a delinqüir.
CAPÍTULO I – ASPECTOS HISTÓRICOS
O Direito nos tempos remotos
A evolução da ciência jurídica está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento
do homem em sociedade. Aquele ser que até então vivia isoladamente, um ser individualista,
sem se dar conta de sua racionalidade, desconhecia também a sensação de estar em conflito
com outro animal de sua mesma espécie, na disputa por um mesmo território ou qualquer
outra coisa que despertasse um interesse em comum entre ambos. A partir do momento que
o homem reconheceu sua condição de ser um ser social e passou a conviver com outros
indivíduos iguais a si, neste mesmo instante os conflitos passaram a surgir.
Desse modo, o surgimento das primeiras instituições jurídicas, ou a origem do
Direito propriamente dito, pode ser visto como o efeito do reconhecimento do homem primata
como sendo um ser social. Ao passar a viver em um ambiente coletivo, houve a conseqüente
necessidade de se estabelecer regras para organizar e até mesmo controlar os hábitos daqueles
que formavam uma mesma comunidade ou clã.1
Na formação dos primeiros aglomeramentos de pessoas os conflitos possuíam
caráter primitivo, e a necessidade era de manter-se com vida. Os indivíduos possuíam
o premente desejo de sobreviver diante das intempéries que se apresentavam tais como
os infortúnios da natureza que acarretavam a escassez de alimentos, por exemplo. Isso
ocasionava agressões e desentendimentos entre os indivíduos dentro de determinada
comunidade ou de um clã contra outro grupo de indivíduos.
João José Leal ensina que desde sempre, o homem viveu em grupos e para reger
sua vida social, criou regras, que deixaram de ser tradições, superstições ou costume místicos,
observados pelos membros dos grupos. Tudo era mistério e divino, razão que o respeito a
estas normas era de natureza sagrada e de onde vem a ideia de proteção totêmica e das leis do
tabu, usado para comportamento. O totem representava a entidade protetora do grupo, ou a
representação do deus que os protegia. Assim, o grupo primitivo reagia contra o infrator e o
punia, para restabelecer a proteção sagrada, que havia sido perdida com a ofensa às normas do
O direito surge com o aparecimento do homem na terra e com a fixação do homem ao solo. Afirmamos que
após esse fenômeno, toda a conflituosidade passa a existir. O homem que vive em uma ilha, isolado, não possui
conflitos, nenhum laço o une, quer em relação ao solo, quer em relação a qualquer coisa. Posteriormente, com a
agregação de vários grupos, o fenômeno da civilização acontece, e podemos afirmar que nasce verdadeiramente
um conjunto de direitos que mais tarde chamaremos de Direito Positivo. Este acompanhará o ser humano, onde
quer que vá. (COSTA, 2007, p. 26)
tabu. A pena remota significava vingança e revide à agressão sofrida e sua aplicação aplacava
a cólera divina, naquele interesse coletivo. Não havia lugar para a individualidade.
Numa etapa encontramos as penas de perda da paz e de vingança de sangue, que
consistia na expulsão do infrator do meio em que vivia. Para o indivíduo isso
significava a morte, uma vez que era impossível sobreviver isolado em meio à
natureza hostil. Já a vingança de sangue era aplicada aos infratores estranhos ao
grupo, por violações ao tabu. É provável que a guerra entre as tribos primitivas fossem
motivadas pela represália de indivíduos do mesmo clã sangüíneo contra membros de
outros grupos, dando origem à convencionada ‘vingança do sangue’. Em todas estas
etapas o cunho religioso e consuetudinário imperava sobre as idéias do direito penal.
As superstições e crenças constituíam-se em fundamentos de todas as atitudes do
homem primitivo. O caráter, portanto, era muito mais religioso que jurídico. O poder
coercitivo atuava com base no temor religioso ou mágico. O crime é a transgressão da
ordem jurídica estabelecida pelo poder do Estado e a pena a reação do Estado contra a
vontade individual oposta à sua. (LEAL, 2012, p.08)
Nesta fase arcaica da história da humanidade e conseqüentemente da evolução do
direito não havia uma tipificação de quais condutas seriam consideradas ilícitas ou não, nos
moldes como o Direito Penal se apresenta nos dias atuais em pelo menos na maior parte dos
países ocidentes que são reconhecidos como nações com governos democráticos e laicos.
A escassez por vezes diminui, por vezes aumenta o nível de agressão. No norte
gelado, as pessoas combatiam a natureza em vez de combater uns aos outros.
Somente as tribos do Ártico, entre os filhos do homem, ignoram o que seja a guerra
e o sangue humano. A ética esquimó envolvia rígidos padrões de comportamento
associados aos perigos de sua existência e às dificuldades da caça. Mas entre os ik,
na África, as penúrias e as pressões da desapropriação geravam violência. Como
dizia o velho provérbio: O caçador ordena, mas o agricultor suplica. (THOMSON,
2002, p. 27)
A fase arcaica do Direito
Os primeiros agrupamentos de pessoas eram formados por indivíduos de uma
mesma família. O parentesco e os laços de consangüinidade foram a base que formaram
as primeiras comunidades e também o direito arcaico, já que os costumes, as crenças e
tradições do clã ditavam as regras para todo o grupo. Portanto, as primeiras instituições
jurídicas surgiram a partir da formação do grupo familiar e, cada um dos grupos de indivíduos
existentes ou cada clã possuía suas próprias regras, fortemente impregnadas de valor
consuetudinário, já que nesta fase arcaica do direito e também da formação das primeiras
civilizações não havia normas positivadas, pois a cultura da escrita ainda nem sequer era
conhecida.
Um exemplo bem conhecido deste fato é a origem do povo judeu, que foi
denominado primeiramente de Hebreu, em homenagem ao patriarca do clã, Abraão. Isaque,
único filho legítimo de Abraão e Sara, casou-se com uma mulher dentre a sua parentela.
Esaú e Jacó, filhos de Isaque e netos de Abraão, receberam o mesmo conselho para encontrar
uma esposa entre os seus parentes, mas somente Jacó seguiu este mandamento deixado
pelo patriarca de seu clã. Os descentes de Jacó deram origem às doze tribos de Israel e,
por conseqüência, à tribo de Judá e a formação de uma numerosa civilização com hábitos,
costumes e crenças próprias, adquiridas por estes indivíduos no decorrer de sua história e
resguardados fielmente até os dias de hoje por seus descendentes.
E disse Abraão: Porque eu dizia comigo: Certamente não há temor de Deus
neste lugar, e eles me matarão por causa da minha mulher. E, na verdade,
é ela também minha irmã, filha de meu pai, mas não filha da minha mãe; e
veio a ser minha mulher; E aconteceu que, fazendo-me Deus sair errante da
casa de meu pai, eu lhe disse: Seja esta a graça que me farás em todo o lugar
aonde chegarmos, dize de mim: É meu irmão. Então tomou Abimeleque
ovelhas e vacas, e servos e servas, e os deu a Abraão; e restituiu-lhe Sara, sua
mulher. E disse Abimeleque: Eis que a minha terra está diante da tua face;
habita onde for bom aos teus olhos. E a Sara disse: Vês que tenho dado ao
teu irmão mil moedas de prata; eis que ele te seja por véu dos olhos para com
todos os que contigo estão, e até para com todos os outros; e estás advertida.
E orou Abraão a Deus, e sarou Deus a Abimeleque, e à sua mulher, e às suas
servas, de maneira que tiveram filhos. (GÊNESIS, 1997, p. 19)
É nítida nos textos bíblicos a preocupação dos patriarcas e dos sacerdotes em
manter a hegemonia na linhagem do povo Hebreu e este fato retrata fielmente o cenário social
e jurídico da época.
Qualquer manifestação de crença ou costume contrário ao que determinado clã
ou povoado estava habituado, era considerado crime, injusto. Daí a preocupação em manter o
povo Hebreu fortemente resguardado contra os costumes e crenças de povos estrangeiros, o
que explica a punição e o combate contra a idolatria, por exemplo.
A dificuldade de se impor uma causa primeira e única para explicar as origens
do direito arcaico deve-se em muito ao amplo quadro de hipóteses possíveis
e proposições explicativas distintas. O direito arcaico pode ser interpretado a
partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade pré-
histórica fundamenta-se no princípio do parentesco, nada mais natural do que
considerar que a base geradora do jurídico encontra-se primeiramente, nos laços
de consangüinidade, nas práticas de convívio familiar de um mesmo grupo social,
unido por crenças e tradições. É neste sentido que a lei primitiva da propriedade e
das sucessões teve em grande parte sua origem na família e nos procedimentos que
a circunscreveram, como as crenças, os sacrifícios e o culto aos mortos. Ninguém
melhor que Fustel de Coulanges para escrever que o direito antigo não é resultante
de uma única pessoa, pois se impôs a qualquer tipo de legislador. Nasceu espontânea
e inteiramente nos antigos princípios que constituíram a família, derivando “das
crenças religiosas, universalmente admitidas na idade primitiva desses povos e
exercendo domínio sobre as inteligências e sobre as vontades”. Posteriormente, num
tempo em que inexistiam legislações escritas, códigos formais, as práticas primárias
de controle são transmitidas oralmente, marcadas por revelações sagradas e divinas.
(WOLKMER, 2006, p. 18)
Uma vez infringido algum princípio relacionado aos costumes, ao meio de
convivência ou ao modo de vida daquele clã ou grupo de pessoas surgia para estes a
possibilidade e às vezes o dever de aplicar uma conseqüência, que seria uma sanção ao
infrator em retribuição ao mal causado para aquela comunidade. Nesta fase da história, nas
civilizações primitivas não havia distinção entre o âmbito jurídico e religião.
Qualquer ato ou crença diverso ao propagado entre os indivíduos de um mesmo
grupo social poderia ser considerado crime e ser punido com a pena de morte. Neste sistema
de direito arcaico considerava-se justo aquilo que era responsável por manter a união e
estabilidade social de todo o grupo. Qualquer um do grupo poderia ser culpado e sofrer
alguma punição por causa de uma tempestade que destruiu a lavoura de determinado produto
agrícola indispensável para a subsistência da coletividade, por exemplo. Os conflitos de
interesses individuais somente eram resolvidos após a negociação entre as partes, muitas
vezes após longo percurso de tempo, sem um magistrado com a função de julgar e dizer a
quem pertence o direito, na forma que ocorre nos dias de hoje.
Outrossim, o Direito era fortemente impregnado pela religião, de tal maneira que
a distinção entre regra religiosa e regra jurídica muitas vezes era difícil. Nessas
sociedades a religião, a moral, o direito etc. se confundiam. A influência da
religião sobre o direito manteve-se de resto em numerosos sistemas jurídicos até
nossos dias, podendo-se citar como exemplo o mulçumano e o hindu. […] No
sistema arcaico do Direito considerava-se justo tudo aquilo que interessava para
a manutenção da união do grupo social e não o que tendia ao respeito dos direitos
individuais. Daí uma grande severidade em relação a todo o comportamento anti-
social, quer dizer, contrário aos interesses do grupo, e, pelo contrário, uma tendência
a procurar a conciliação para resolver todo conflito no seio do grupo. A função
de julgar não consistia em resolver um conflito de interesses segundo regras pré-
estabelecidas, mas em tentar obter o acordo das partes por concessões recíprocas;
donde a importância das negociações, que podiam durar dias, e também a ausência
de qualquer noção de autoridade do caso julgado. (ROMÃO; CAVALCANTI;
KOGAN; 2003, p. 37)
O Direito positivado
Desde o surgimento das primeiras civilizações houve a necessidade de se
estabelecer regras com a finalidade de moldar a conduta das pessoas e organizar o convívio
destas na sociedade. Nesta fase do desenvolvimento social e jurídico da humanidade, não
existia os conceitos de direito, justiça, política e religião com há atualmente.
Eram os costumes e as crenças religiosas que nesta época ditam as regras
e procuram moldar o comportamento de cada individuo dentro do seu povoado. “Eram
direitos numerosos. Cada comunidade tinha o seu próprio costume, porque cada qual vivia
isoladamente, quase sem contato com outras comunidades.” (ROMÃO; CAVALCANTI;
KOGAN, 2003, p. 36)
Há quem defenda fortemente a idéia de que o surgimento da ciência jurídica está
intrinsecamente ligado ao desenvolvimento da escrita, mas é incontestável que muitos povos
mesmo sem possuir o conhecimento da escrita conquistaram largo desenvolvimento social
e jurídico, a exemplo dos maias, incas e astecas. A ausência de regras positivadas não os
impediu de se organizarem socialmente e formar vastos impérios. Atualmente, é consenso
entre os historiadores que a origem do Direito situa-se na fase pré-histórica, onde o Homem
ainda não havia desenvolvido a escrita.
Cada civilização primitiva foi desenvolvendo a técnica da escrita em tempos
diferentes uma das outras. Mesmo que a origem da ciência jurídica se deu no período pré-
histórico, é incontestável que o mérito do largo desenvolvimento do Direito ao longo do
percurso histórico se deve aos textos escritos.2
Os primeiros documentos contendo textos jurídicos não eram códigos
propriamente ditos. O conteúdo destes textos não apresentava teor de lei, mas jurisprudencial,
já que estes textos contendo direitos cuneiformes descreviam um caso concreto e a solução
jurídica para o caso em tela, devendo o juiz seguir aqueles ensinamentos na prática. 3
Preliminarmente, necessário se faz distinguir dois momentos: a pré-história do Direito e a história do
Direito, distinção esta que tem por base o conhecimento ou não da escrita. O aparecimento da escrita e, em
conseqüência, dos primeiros textos jurídicos, situa-se em épocas diferentes para as diversas civilizações. […] As
origens do Direito situam-se na época pré-histórica, o que significa que delas quase nada se sabe. (ROMÃO;
CAVALCANTI; KOGAN, 2003, p. 35-36)
Vale ressaltar que não são propriamente Códigos, no sentido próprio do termo; são sobretudo recolhas de textos
jurídicos agrupados de forma sistemática. Tais textos não parecem sequer leis, mas julgamentos de Direito,
ensinamentos indicando o caminho aos juízes. Cada frase, em regra breve, diz respeito a um caso concreto e
dá a solução jurídica. Logo, a natureza jurídica destes códigos é jurisprudencial. Contudo, não se pode negar
que esses códigos constituem os primeiros esforços da humanidade para formular regras de Direito. (ROMÃO;
CAVALCANTI; KOGAN, 2003, p. 48)
Com o passar do tempo, assim como houve o desenvolvimento das sociedades
primitivas de caráter familiar e patriarcal em vastas e numerosas civilizações, o Direito
também apresentou grande evolução em cada uma dessas sociedades.
Apesar de que os conhecimentos de alguns ramos da ciência são bem atuais, como
por exemplo, a tecnologia e a medicina, os alicerces do Direito são antiguíssimos, pois se
desenvolveu concomitantemente à inserção do homem em um ambiente coletivo.
Juarez Tavares ensina que o Direito Penal se origina no período superior da
barbárie, com a divisão social do trabalho e da sociedade de classes.
Iniciado por volta de 4.000 a.C., é marcado pelo aparecimento das primeira
civilizações, com organização sócio-política-econômica e a figura do soberano
representando o poder absoluto do Estado nascente. São ingredientes que permitirão
a repressão criminal de caráter público, com reação penal proporcional à gravidade
do delito. É o tempo do Talião. Mesmo aí o Direito Penal ainda tem caráter místico,
menos que no período primitivo. Na Lei do Talião o castigo tem mesma proporção
da culpa. Significa limitar, restringir, retribuir na mesma proporção de suas gravidade
as conseqüências do crime praticado, na mesma forma e intensidade do mal por
ele causado. É o popular ‘olho por olho, dente por dente’. É uma forma de acabar
com a punição ilimitada e desregrada. Embora suas penas pareçam cruéis, coube à
Lei de Talião um abrandamento do sistema punitivo então vigente. A maioria dos
povos antigos recorreu a esta prática. Encontramos citações a respeito no Código de
Hamurabi. Os hebreus também utilizaram o recurso, constatável tal fato na própria
Bíblia. Na Lei das XII Tábuas o termo ‘talião’ é citado explicitamente e no século IX
a.C. é a vez do Código de Manu recorrer a tal artefato. (TAVARES, 2009.p, 116)
Ao desenvolver a técnica da escrita, houve um significativo amadurecimento
do direito ainda nas civilizações antigas, que aos poucos foi perdendo o seu caráter
consuetudinário e religioso em grande parte destas sociedades. Os textos com conteúdos
jurídicos passaram a tratar de assuntos relacionados ao patrimônio das pessoas, direito de
sucessão e família, e normas penais, por exemplo.
Importante salientar, por fim, que muitos dos preceitos jurídicos que surgiram
nos sistemas legais de sociedades antigas ainda hoje servem de importante alicerce para as
instituições jurídicas atuais. A maior parte das legislações dos países ocidentais atualmente
possui seus alicerces em fundamentos e princípios jurídicos que surgiram em algumas dessas
civilizações antigas e, em se tratando de Direito Penal, a base jurídica ou o fundamento destas
normas vem principalmente de ideais da Roma e da Grécia.
A contribuição herdada do Direito Penal Romano aos dias atuais
Como o enfoque do presente estudo é especificamente o instituto do direito
penal, necessário se faz destacar pontos importantes do seu desenvolvimento histórico,
principalmente para a compreensão do sistema penal e carcerário no Brasil atualmente, já que
as leis e os princípios que fundamentam nosso ordenamento jurídico é fruto do
desenvolvimento social, histórico e cultural de vários povos no percorrer do tempo.
Os códigos morais tendem a estar relacionados com as sociedades em que
evoluem, e embora possa haver um padrão absoluto, visões de certo e errado às vezes
variam consideravelmente. Circunstâncias econômicas, disponibilidade de comida e outros
suprimentos, são fatores identificáveis que exercem influência sobre os padrões morais. Na
história é uma característica de grupos relativamente ricos, a tolerância ao suborno, como
aconteceu na Roma Imperial, na China, no ancien régime Frances e na Bizâncio medieval.
O romano republicano orgulhava-se de comer moderadamente. Mas, algumas
centenas de anos depois, o herói cômico da Roma Imperial, Trimalquio, vomitou
só para poder comer mais, e o imperador Vitélio, em nove meses, supostamente
consumia uma fortuna em comida. Maomé classificava como três as mais
importantes atividades humanas: a prece, o jejum e a doação de esmolas, mas seus
seguidores otomanos foram bem menos comedidos. Buda, Lao-Tse e Sócrates
pregavam a moderação dos apetites. (THOMSON, 2002, p. 27)
As leis e princípios jurídicos vigentes no Brasil atualmente sofreram a influência
de pensamentos vindos de diversas épocas e partes do mundo, mas os princípios encontrados
em nossa legislação criminal em sua grande maioria contêm fundamentos com origem
principalmente oriunda do antigo direito penal romano.4
O Direito é fruto da formação das primeiras sociedades e sua conseqüente
necessidade de impor limites ao comportamento do homem, para assim alcançar o fim de
promover o equilíbrio social dentro da própria comunidade. Para que haja paz e estabilidade
dentro do grupo de indivíduos que ocupam o mesmo tempo e espaço é necessário que todos
respeitem as regras ali estipuladas, independentemente se escritas ou orais.
Nas sociedades primitivas as sanções penais tinham caráter religioso e místico,
pois o próprio sistema jurídico nesta fase da história da humanidade continha características
O estudo da história do Direito Romano é relevante para os dias atuais, posto que o direito praticado e aplicado
no Brasil, ‘sofreu’e ‘sofre’influências romanistas. Esse direito é a base de vários conceitos e institutos da
atualidade. Podemos afirmar que foi o direito que, com suas normas jurídicas, vigorou em Roma. (COSTA,
2007, p. 36)
baseadas na religião e nos costumes. Doenças, fome e fenômenos naturais eram considerados
castigos divinos em razão da contravenção de alguma crença. Tais infortúnios eram
considerados uma sanção a todo o grupo, o preço pago pela não observância de algum
preceito de cunho religioso que determinada comunidade tinha a obrigação de preservar.
Quando a sociedade surge, há necessidade de se impor limites a essa ação humana.
Esse fato é muito bem retratado pela abstração do legislador, quando valora as
normas de condutas que devem ser respeitadas pelo corpo social, em determinado
tempo e determinado espaço. Estes, por meio de normas, quer orais, quer escritas,
teriam a finalidade de frear o ímpeto do homem quando está atuando em grupo.
Embora o direito tenha surgido junto com o homem, não podemos falar em um
sistema orgânico de princípios nos tempos primitivos. Os grupos sociais, dessa era,
viviam em um ambiente mágico e religioso: a peste, a seca e todos os fenômenos
maléficos eram vistos como resultantes das forças divinas. O funcionamento da
sociedade dava-se de forma que se um indivíduo cometia um crime, as explicações
para a sua punição estava nos deuses (se a nação era politeísta), ou mesmo em deus
(se a nação era monoteísta). (COSTA, 2007, p. 30)
A preocupação do Direito em fazer justiça
Com o crescimento e multiplicação dos povoados e a utilização da escrita por
grande parte das civilizações, passou-se a tipificar em textos quais condutas seriam lícitas ou
não aos participantes de cada grupo social. Ainda assim, os costumes e os rituais religiosos
continuaram a ser a base do sistema jurídico da época.
Era função dos sacerdotes a interpretação e aplicação da lei, o que era feito com
base nos costumes e crenças de cada clã ou comunidade. A sanção penal significava uma
vingança, uma retribuição ao mau comportamento daquele povoado ou por um ato veemente
proibido praticado por uma pessoa em particular. 5
Nas sociedades primitivas a pena consistia em mera preocupação de se fazer
justiça e, aos poucos, foi ganhando característica de vingança privada, pois não havia neste
caso a preocupação em reparar o dano sofrido pela vítima e nem possuía objetivo sócio
educativo, afim de que aquele que perturbou a estabilidade social do grupo não voltasse a
praticar os mesmos atos novamente.
Esta característica de vingança privada na esfera criminal dos povos primitivos
A pena, nada mais significava do que vingança, com o intuito de revidar a agressão sofrida. A preocupação
em castigar não se dava pelo sentimento de ofensa a pessoa que sofreu a agressão e sim pela preocupação em se
fazer justiça. Portanto, a influência religiosa na vida dos cidadãos e membros da comunidade era muito forte e
preponderante. As leis eram interpretadas pelos sacerdotes e membros religiosos do grupo e davam um caráter
sobrenatural aos acontecimentos. Nesse período, o sacerdote tinha uma função dupla, interpretava e aplicava a
lei. (COSTA, 2007, p. 31)
deu origem a uma desproporcionalidade da pena aplicada em relação ao delito praticado, uma
vez que a reação e o desejo de se fazer justiça partia não somente do ofendido, mas também
de sua própria família ou tribo e a vingança nem sempre estava centralizada na pessoa do
ofensor, mas em todo o seu grupo de convívio comum. 6
Com a intenção de evitar que comunidades ou clãs inteiros acabassem dizimados
por motivos muitas vezes considerados mesquinhos, surge em seguida uma nova etapa na
evolução do direito penal – A Lei de Talião – definido simplesmente pelo conhecido ditado
popular: “olho por olho, dente por dente”. A Lei de Talião consistia em dar proporcionalidade
na pena aplicada ao meliante diante da ofensa cometida pelo mesmo. O primeiro texto
jurídico a conter este preceito foi o Código de Hamurabi, exemplo colacionado a partir daí
nos textos com conteúdo jurídico de outras civilizações da antiguidade.7
O Direito do estado em punir
Das civilizações antigas, o Direito Romano foi o que mais influenciou a política
e o Direito dos países ocidentais, inclusive o Brasil. Os institutos e princípios jurídicos da
Roma antiga ainda hoje são os alicerces e os fundamentos da ciência jurídica contemporânea.
Após as formas arcaicas de punição na forma de vingança divina e na modalidade de vingança
privada, esta última na qual se manifestava através da composição do litígio entre o ofendido
e o ofensor, o Direito Penal romano passa a ser considerado assunto de Estado, e não mais de
sacerdotes e particulares.
O direito de punir passa a ser de responsabilidade do Estado e não mais do
próprio ofendido e, surgem assim, as primeiras espécies de penas ou sanções criminais: penas
corporais, penas infamantes e penas pecuniárias. Para os crimes comuns, de menor potencial
ofensivo, normalmente a sanção aplicada era a pena de multa, situação muito semelhante a
prevista na legislação penal brasileira vigente nos dias de hoje, em que somente é prevista a
sanção penal na modalidade de detenção, considerada a maior pena em nosso sistema, para as
Sob esse aspecto no campo criminal: quando um crime era cometido, ocorria a reação não só da vítima como
de seus familiares e também de toda a sua tribo: a ação contra o ofensor era tão desmedida que não se destinava
só ao infrator, mas a todo o seu grupo. Já se o transgressor fosse membro da tribo, poderia ser expulso e ficava à
mercê dos outros grupos, o que acabaria resultando em morte. (COSTA, 2007, p. 31)
Para se evitar a dizimação dos povos, surge o Talião que limita a reação à ofensa a um mal idêntico ao
praticado. Interpretar a lei historicamente é importante para não se cometer erros. Para a época, o Talião
representou um grande avanço, visto que dava uma certa proporcionalidade a ofensa praticada pelo inimigo.
Talvez o princípio da proporcionalidade, aplicada ao crime e a pena como decorrente deste, esteja justamente na
lei de Talião, embora não seja citada. (COSTA, 2007, p. 32)
infrações mais graves.8
Quando a vingança, a punição, a obrigação ou o dever de impor uma sanção a
determinada conduta de um indivíduo do grupo social passa a ser controlado pelo Estado, o
Direito Romano passa a dividir os delitos em duas importantes categorias, e que ainda hoje
recebem classificação semelhante em nosso sistema penal: os crimes de ação penal pública
– crimina pública – de responsabilidade e interesse do Estado, representado este na pessoa
de um magistrado; e a delicta privata – para as infrações menores, condutas menos graves,
cabendo ao próprio ofendido a função de reprimir a conduta delituosa, com supervisão do
Estado apenas para regular o seu exercício.9
Durante a idade média, a Europa oriental viu crescer o estilo nas aristocracias,
e diminuir a liberdade para as massas camponesas. Na Prússia houve a sinistra ascensão da
classe dos Junkers e o concomitante declínio da condição dos camponeses. Na Hungria, estes
camponeses se tornaram servos e podiam ser chicoteados. O mais serio de tudo – devido
a extensão do território – foi o governo russo imperial de 1649, que deu início ao rápido
declínio do campesinato russo para a servidão.
A liberdade de movimento tornou-se ilegal. Logo os servos podiam ser açoitados
por seus patrões e em 1660 a imensa maioria da população russa era de servos. Foi
uma repressão em massa com conseqüências duradouras. Na Polônia, a crescente
população judaica empurrada para o leste depois de expulsa da Espanha, foi
segregada e jogada nos guetos. Já em 1648, sua impopularidade aumentara, pois eles
eram coletores de impostos do reino, e muitos foram massacrados pelos cossacos.
A vastidão e o relativo isolamento da Rússia significava que essa violência sádica
continuava sendo um importante instrumento de controle social. A tortura com
batog, cnute e fogo era prática normal. Em 1704, quando o Regimento Strelsti
amotinou-se contra Pedro, o Grande, quase dois mil soldados foram torturados
durante seis semanas. Os russos tinham até sociedades de tortura, onde os membros
voluntariamente se submetiam as torturas, de modo a ficarem mais bem preparados
para resistirem a confissão na situação real. Pedro, embora fizesse uso da violência
planejada, de fato realizou algumas reformas éticas notadamente, o fim da prática
do infanticídio, método pelo qual até então, eram descartados os bebês ilegítimos
ou deformados. ( ….) Pouco surpreende que nesta época a Rússia tenha produzida
várias seitas religiosas escapistas. Remanescentes dessa época ainda estavam
fazendo objeções à educação compulsória e roupas formais em 1930 no Canadá.
(THOMSON, 202, P.414)
Em Roma, no que tange ao aspecto da aplicação da justiça criminal tivemos as fases da vingança, dividindo
esta em vingança privada e vingança divina, e mais adiante com a composição, a fase da vingança divina é
retratada na época da Realeza, separando-se direito de religião. A lei criminal romana conheceu, no auge de seu
desenvolvimento, três espécies de pena: corporais, infamantes e pecuniárias. No tempo do Império, a pena de
multa era a mais frequente quanto aos crimes comuns. (COSTA, 2007, p. 45)
Os delitos são divididos em crimina pública, ou seja, isso ficava a cargo do Estado, representado pelo
magistrado com poder de Imperium com a função de garantir a segurança pública; e delicta privata, que
consistiam em infrações menos graves, quando a função de reprimir caberia ao particular ofendido, havendo a
interferência estatal apenas para regular seu exercício. (COSTA, 2007, p. 46)
É incalculável a contribuição que o Direito Romano da antiguidade deixou aos
países ocidentais. No campo do Direito penal, podemos citar mais alguns importantíssimos
conceitos que tiverem origem no antigo direito romano e que são muito usuais ainda nos
dias de hoje: “O Direito Romano contribuiu para a evolução do direito criminal, por meio da
criação de princípios criminais, como erro, culpa, dolo, imputabilidade, coação irresistível,
agravantes, atenuantes, legítima defesa.” (COSTA, 2007, p. 47-48)
Apesar de toda a riquíssima contribuição que os países ocidentais herdaram do
Direito Romano da antiguidade na formação dos conceitos políticos e jurídicos de cada uma
destas sociedades, inclusive as jovens nações latino-americanas, este gigantesco império já
possuía problemas sociais bem atuais e que em muito se parecem com o contexto histórico em
que está inserido o Brasil.
As doses de pena
A enorme desigualdade social entre plebeus e patrícios, os problemas
relacionados com a falta de educação e cultura das camadas mais pobres da sociedade, a falta
de saneamento básico, as doenças, o grande número de escravos e a alta taxa de criminalidade
mais a soma que todos estes problemas resultaram fez com que os procedimentos criminais
fossem insuficientes para manter a segurança e a tranquilidade social do império.
jurisdicidade, com seus institutos, práticas e entendimentos doutrinários perdurando
julgados pela justiça civil que, na maioria dos casos, impunha às partes a composição.
Não bastava apenas a força física dos seus exércitos para manter as conquistas
territoriais do império. Fazia-se necessário um avançado sistema jurídico, que
mantivesse a ordem, a chamada pax romana, nas mais distantes regiões dominadas.
Daí decorre o motivo de serem tão extraordinários no início da história da
até hoje. Os romanos não sistematizaram os institutos penais. Cada caso era julgado
em sua particularidade. O processo penal teve relevante importância. No campo
específico do Direito Penal, após o período primitivo de caráter essencialmente
religioso, houve uma preocupação de laicizar o sistema repressivo, punindo o
infrator com fundamento no interesse individual ou público. As infrações passam
a ser divididas em crimes públicos (crimina pública) e privados (delicta privata).
Os primeiros constituíam-se em atos atentatórios à segurança interna ou externa do
Estado Romano e, por isso, cabia a este exercer a repressão contra o delinqüente.
Com o transcorrer dos tempos outros atos passaram à categoria de crimes públicos,
como é o caso do homicídio, originariamente sancionado pelos familiares da vítima
sob a denominação. As penas eram severas, como de morte ou deportação. Os crimes
privados ficavam sujeitos à repressão do ofendido ou de seus familiares e eram
As penas eram: supplicium (executava-se o delinqüente) damnum (pagamento
em dinheiro) poena (pagamento em dinheiro quando o delito era de lesões) Outro
aspecto interessante verifica-se no poder concedido ao pater famílias, que atua não
só no direito de família mas também no criminal. Houve tempo em que dispunha até
mesmo de direito de vida e morte sobre todos os seus familiares. Para os romanos a
pena criminal, passado o período primitivo, revestia-se de uma função retributiva, de
exemplaridade e, também, de prevenção. Também cabe assinalar que o Direito Penal
romano atingiu um grau técnico-jurídico de elaboração suficiente para distinguir o
elemento subjetivo da infração (dolo ou culpa) do fato puramente material. Surgem
daí as noções de crimes dolosos (intencional) e culposos (não intencional). No caráter
da imputabilidade, os juristas romanos souberam compreender que os menores e os
doentes mentais não podiam ser capazes de agir com culpabilidade. (THOMSON,
202, P.414)
A falta de segurança e estabilidade social que assolou o império romano há tantos
séculos atrás é o cenário político e social atual de vários países, inclusive o Brasil. A alta taxa
de criminalidade e a insegurança social no Brasil não são mais um problema exclusivo das
grandes cidades, pois a má distribuição de renda e o consumo cada vez mais excessivo de
drogas vêm alastrando estes problemas sociais para as pequenas cidades do interior. O sistema
penal e carcerário brasileiro há muito vem mostrando sinais de falência não sendo mais
suficiente uma sanção penal para reprimir as condutas violentas e anti-sociais.
Em Portugal, o assunto é debatido de forma aberta e a imprensa é atacada pelos
críticos, questionando a forma como os crimes são noticiados.
Em Portugal só se pode falar de assaltos se estes forem apresentados como uma
consequência da crise (Veja-se por exemplo este título da edição de hoje do
PÚBLICO “Crimes violentos alastram pelo país à medida da crise financeira” ). Esta
ideia de que os desempregados e os pobres se tornam em ladrões de caçadeira em
punho parece-me profundamente ofensiva para os desempregados e para os pobres
pois é não apenas uma ideia preconceituosa mas também falsa. Do que não se pode
falar é da influência da legislação e do desfecho de vários julgamentos na proliferação
do crime. Apanhar uma couve, meia dúzia de batatas. É crime. Será crime matar a
fome aos filhos? Mas o que se pode chamar a assaltos á mão armada?
Mas não será crime aquilo que sujeitos feitos governantes fizeram a este país? Não
será crime ver o que desavergonhadamente acontece todos os dias, e, todos os dias
vem relatado na imprensa? (O INSURGENTE, Blog )
Na prática, e lei de execução penal brasileira não é capaz e nem eficiente
em cumprir com a sua principal tarefa: reeducar o delinqüente para voltar a conviver
pacificamente em sociedade, com uma pequena margem para a reincidência. “Os problemas
que Roma tinha eram sociais e não penais, mas desde aquela época se esperava que o direito
penal fosse resolver os problemas da sociedade.” (COSTA, 2007, p. 59)
A imagem do negro e do índio apenado durante a formação da sociedade brasileira
Para a compreensão dos problemas sociais que marcam os dias atuais no Brasil,
principalmente no tocante à questão da alta taxa de criminalidade cada vez mais crescente e
os meios cada vez mais ineficazes de repreensão aos crimes, necessário se faz a recordação
de alguns fatos históricos ocorridos desde a chegada principalmente de portugueses em nosso
território e que resultaram na formação da sociedade brasileira.
A principal arma utilizada pelos europeus na conquista destas terras não foram
a espada ou a pólvora, mas o sentimento de superioridade destes em relação aos nativos que
aqui habitavam – eurocentrismo – o que resultou no extermínio de diversas tribos e etnias
originárias deste continente logo no início do processo de colonização e deu origem aos
inúmeros problemas sociais enfrentados não somente pelo Brasil mas também pelos demais
países latino-americanos até os dias atuais.
Miguel Deretti relata a chegada dos primeiros europeus ao fértil Vale do Itajaí, na
região sul do Brasil, localizado no coração do estado de Santa Catarina, e narra os conflitos
existentes com os índios.
Em 1901, um grupo de mais de 50 índios botocudos, aproveitando-se da ausência
do chefe da família, atacaram com grande violência a casa dos Schiochet, matando a
mãe, com 36 anos de idade, as duas filhas, com 10 e 12 anos respectivamente. Dois
filhos pequenos, com 3 e 6 anos de idade escaparam da morte escondendo-se dentro
de um bueiro. No mesmo dia, ainda no mesmo lugar, os índios atacaram a família de
Lourenço Mondini, com gritos e flechas. (DERETTI. 1970, p. 60)
Além do extermínio em massa de povos nativos e a cruel realidade da mão
de obra escrava que marcou o processo histórico e a formação da sociedade brasileira, a
idéia de inferioridade destas raças em relação ao homem branco, europeu, deixou cicatrizes
também na área criminal. Apesar dos avanços que a legislação recebeu no decorrer do tempo,
principalmente após os debates envolvendo a questão dos Direito Humanos, a verdade é
que na prática nosso sistema carcerário e as próprias sanções penais estabelecidas em lei são
eivados do mesmo racismo histórico que fez parte do conteúdo da legislação penal brasileira
na fase colonial e imperial do país. 10
“Nessa visão, ao fazer a apologia da modernidade, entende-se que todos
os ‘avanços’ que ela representa constituem o resultado de um desenvolvimento natural do
É certo que as matrizes teóricas utilizadas pelos nossos juristas e operadores do sistema penal provêm do
pensamento primeiro-mundista, inclusive o núcleo dos apontamentos críticos para a superação de discursos
obsoletos nesta área. Mas também é certo que só aqui, no mundo periférico, estes saberes adquiriram um caráter
extremamente peculiar e cruel, implicando uma prática de extermínio em massa e de segregação social em
escalas sem precedentes. Na verdade, como assinalou o jurista argentino, o sistema teórico latino-americano
na área penal é de um sincretismo assombroso, que, no fundo, esconde um discurso extremamente racista, de
natureza psicobiológica e de exclusão, ou, como diria o filósofo argentino Enrique Dussel, de “ocultamento do
outro”. (WOLKMER, 2006)
próprio ‘ser europeu’ sem levar em consideração a existência da América (…)”. (WOLKMER,
O processo histórico nem sempre representa o desenvolvimento social para
algumas nações, e infelizmente esta é a realidade dos países latino-americanos. O interesse
das metrópoles européias em suas colônias era exclusivamente mercantilista e, aliado ao fato
de considerarem índios, negros e mestiços como uma raça inferior, a única coisa em que os
exploradores europeus demonstravam interesse era nas riquezas daqui extraídas. Na fase
colonial, não havia interesse por parte da metrópole com a formação social de sua colônia.
A aplicação das penas no novo mundo
No Brasil, a realidade da grande massa da população, constituída em sua maior
parte por escravos negros, nativos e mestiços, não se alterou nem mesmo com a chegada da
corte portuguesa ao Rio de Janeiro em 1808.
Apesar da modernização e outras mudanças significativas que ocorreram na
colônia nesta fase, ora sede da coroa, as decisões judiciais e a legislação penal continham
conteúdo com preconceito étnico-racial, já que o índio e o negro, raças que até então
predominavam no cenário social brasileiro não eram considerados cidadãos, e sim, sujeitos
sem história, incapazes de conquistar algo e de tomar decisões.
Desde essa época fundou-se um saber antropológico aplicado à periferia. Esse
saber primeiramente adotou uma roupagem teológica, ora classificando os índios
de criaturas “puras” e “infantis”, ora concebendo-os como bárbaros, pagãos e
adoradores do demônio. Aquela época, que precedia o auge do mercantilismo, já
demonstrava sinais de decadência da própria visão teológica de mundo e trazia as
sementes do que veio a ser chamado de era moderna. Assim, logo depois, o saber
antropológico de inspiração religiosa deu lugar à matriz cientificista naturalista. E, a
partir daí, o índio e depois os negros, mestiços e latino-americanos foram atingidos
pelo rótulo de seres “naturalmente inferiores”. De maneira geral, no período da
conquista, o índio era visto como um ser passivo, incapaz de se tomar sujeito de sua
própria história. Esta imagem permanece até os dias de hoje e estende-se ao latino-
americano em geral. Na verdade, a realidade dos fatos contradiz esse entendimento,
recuperando a “história invisível” da conquista, o processo de resistência militar e,
principalmente, cultural dos povos ameríndios. (WOLKMER, 2006)
Antes de os portugueses aportarem em solo tupiniquim, este território era ocupado
por inúmeras tribos de nativos, cada uma com sua própria organização social com língua,
crenças e costumes bem diferentes umas das outras, assim como ocorreu na formação dos
primeiros grupos sociais no antigo continente europeu milhares de anos antes.
Ainda não dominavam a técnica da escrita, por isso não há informações precisas
sobre a forma de organização social destas comunidades e principalmente sobre a forma
de punição que recebiam os infratores destes grupos de nativos, mas de qualquer forma, o
que passou a valer para todos foi as desconhecidas e talvez inexplicáveis regras do povo
dominador, leia-se Europeus.
A influência da religião
Os colonizadores portugueses jamais reconheceram qualquer prática tribal de
organização social e sobre o Direito destes remanescentes de povos indígenas. No máximo,
estas informações continham caráter experimental e secundário. Vale ressaltar que o mesmo
ocorreu com a chegada de negros ao país para fomentar o mercado de mão de obra escrava. 11
Com o crescimento dos primeiros povoados brasileiros, coube aos padres jesuítas
não só a missão de evangelizar os nativos, mas também de organizar o meio social destas
comunidades e aplicar meios coercitivos àquele que infringisse alguma conduta tipificada no
Código Penal do Livro de Ordens da Companhia de Jesus. Um exemplo disto é o que ocorreu
na missão jesuítica do Paraguai, onde a vingança privada não era permitida e o ofensor seria
punido através de uma sanção penal previamente estabelecida no Código.
A legislação penal desta fase colonial era eivada de princípios religiosos, e não
jurídicos propriamente ditos. Sob a influência do direito canônico, puniam-se atos praticados
contra a moral, atos praticados contra os bons costumes e crimes praticados contra a fé e
religião.
Os nativos nesta fase vão se deparar diante da idéia de culpa e de pecado, até
então inexistente no imaginário indígena. O Cristianismo foi a principal forma utilizada pelos
jesuítas para o controle dos hábitos destes grupos de indivíduos recém formados.12
Vale ressaltar uma vez mais que, com a utilização de escravos negros para
fomentar a economia da colônia, também não era permitida e nem levada em consideração
qualquer manifestação de crença, conhecimento ou cultura destas pessoas.
Naturalmente, a legalidade oficial imposta pelos colonizadores nunca reconheceu devidamente como Direito
as práticas tribais espontâneas que organizaram e ainda continuam mantendo vivas algumas dessas sociedades
sobreviventes. Vale dizer que o máximo que a justiça estatal admitiu, desde o período colonial, foi conceber o
Direito indígena como uma experiência costumeira de caráter secundário. (WOLKMER, 2003, p. 47)
O direito penal nas missões também recebeu influência do direito canônico nas questões relativas à moral e
aos “bons costumes”, e nos crimes praticados contra a fé e a religião (heresia, feitiçaria, sacrilégio, apostasia e
outros). Os demais atos imputados como crime, e o sistema de sanções introduzido nas reduções têm sua origem
no direito castelhano. (WOLKMER, 2006, p. 282)
Vale, nesse contexto, outra referência extensa mas não menos, ilustrativa sobre
o sistema de controle social e sobre a organização da Justiça missioneira, trazida
pelo historiador Amo A. Kern, que destaca “nas Missões da Província Jesuítica do
Paraguai, o Código Penal estava inserido no Livro de Ordens, onde se registravam
todas as determinações que emanavam quer das autoridades da Companhia de Jesus,
quer das próprias da administração espanhola. O Código Penal proibia as punições
privadas, pois o castigo deveria servir como exemplo aos demais e assim também
se impediam os excessos. O pior crime que se poderia cometer, o homicídio,
era punido com prisão perpétua, não havendo pena de morte. Cada crime tinha
estipulada a pena, não podendo jamais ser aumentada, mas somente diminuída, pois
eram levadas em conta as boas disposições do culpado. (WOLKMER, 2003, p. 48)
A tutela dos indígenas, confiada aos jesuítas pelo rei e pelos governadores
da colônia, era suficiente para lhes conferir autoridade para fixar e executar as penas,
independentemente de possuírem autoridade judicial de jurisdição criminal. (WOLKMER,
2006, p. 284)
Para cada conduta delituosa havia uma sanção penal correspondente ao crime
praticado, que variava normalmente de uma pena de prisão perpétua ou temporária, multa ou
castigos físicos, sendo esta última forma de sanção criminal a mais usual em se tratando de
índios e escravos negros apenados.
Alem do canibalismo, o homicídio ou suicídio ritual de homens, mulheres e
crianças havia se generalizado nas três Américas, entre as diversas nações indígenas.
Devido à completa amoralidade e promiscuidade sexual em que se encontravam os
guaranis, era permitido aos prisioneiros, enquanto eram engordados, (para serem
comidos) ter relações com as mulheres da aldeia. Os filhos dessas uniões, chamados
“cunhambiras”, eram destinados a ser devorados quando alcançassem um certo
desenvolvimento. Sacrificavam-nos então, na presença do pai, que também era
morto no mesmo dia. A mãe era a primeira a saborear a carne da vítima. O ritual
do massacre durava cinco dias de cerimônia, bailes e bebedeira. Apenas acertado o
golpe mortal na infeliz vítima, velhas mulheres precipitavam-se para recolher-lhe o
sangue e os miolos num pote; o sangue então era bebido ainda quente. Se o morto
tinha mulher, esta era a primeira a saborear a carne do esposo. (SALVADOR, 2006,
p. 17)
Os castigos físicos eram realizados em praça pública, com a finalidade de reprimir
a pratica de tais atos delituosos por outras pessoas. Um exemplo disto é o fato retratado pelo
pintor Jean Baptiste Debret na ocasião de sua visita ao Brasil, aproximadamente em 1808,
quando a sede da coroa portuguesa foi transferida para a colônia.
No caso colacionado abaixo, trata-se da punição dada a escravos reconhecidos
pela legislação penal e pelo órgão julgador da época como criminosos:
O pintor Jean Baptiste Debret conta que, no Rio de Janeiro, escravos acusados
de faltas graves, como fuga ou roubo, eram punidos com cinqüenta a duzentas
chibatadas. Seu dono tinha de comparecer ao calabouço munido de autorização do
intendente de policia na qual deveriam constar “o nome do delinqüente e o número
de chibatadas que deverá receber”. O carrasco, encarregado de executar o castigo,
recebia uma pataca por cem chibatadas aplicadas. Pataca era uma antiga moeda
de prata no valor de 320 réis. “Todos os dias, entre 9 e 10 horas da manhã, pode-
se ver a fila de negros que devem ser punidos”, escreveu Debret. “Eles vão presos
pelo braço, dois em dois, e conduzidos sob escolta da polícia até o local designado
para o castigo. Para este fim existem, em todas as praças mais freqüentadas da
cidade, pelourinhos erguidos com o intuito de exibir os castigados. […] Depois de
desamarrado (do pelourinho), o negro é deitado no chão, de cabeça para baixo,
a fim de evitar-se a perda de sangue. A chaga escondida sob a fralda da camisa
escapa assim à picada do enxame de moscas que logo procura esse horrível repasto.
Finalmente, terminada a execução, os condenados ajustam as suas calças, e todos,
dois por dois, voltam para a prisão com a mesma escolta que os trouxe. […] De volta
à prisão, a vítima é submetida a uma segunda prova, não menos dolorosa: a lavagem
das chagas com vinagre e pimenta, operação sanitária destinada a evitar a infecção
do ferimento. (GOMES, 2010, p. 223)
Na fase imperial da história brasileira, fato que merece destaque é a situação do
escravo diante da lei penal. Embora que diante do âmbito do direito civil o escravo não fosse
considerado cidadão brasileiro, na esfera criminal era considerado sujeito capaz, respondendo
plenamente por seus atos, na mesma forma que qualquer outro sujeito imputável. Mas, caso
fosse o ofendido, “o mal a ele feito era considerado não dano, mas ofensa física (aplicando-
se o dispositivo do artigo 201 do Código Criminal do Império, como aos homens livres),
embora cabendo ao proprietário indenização civil, conforme estipulado nas Ordenações.”
(WOLKMER, 2006, p, 339)
Os castigos
Nesse sentido, é importante destacar que foram os costumes, as crenças e os
hábitos do colonizador branco que basearam predominantemente a formação do Direito no
Brasil, em especial as leis e a realidade do sistema penal ainda vigente no país, sem levar em
consideração a cultura dos nativos e do grande número de negros que predominaram durante a
maior parte do tempo o território brasileiro. 13
O objetivo do presente estudo não é verificar a evolução do direito penal
brasileiro ao longo do tempo, mas analisar brevemente a tendência de vitimização do
Foram os valores e crenças trazidos pelos brancos colonizadores que predominaram na formação cultural
brasileira, havendo, em conseqüência, a retração das culturas indígena e negra. Como, também, eram os
colonizadores que detinham a exploração das riquezas, essa soma de fatores fez com que o direito do português,
que legitimava aquele estado de coisas, imperasse de forma soberana. (WOLKMER, 2006, p. 304)
criminoso brasileiro diante do sistema carcerário pátrio. Apesar de a lei de execução penal
brasileira prever institutos e princípios para a reeducação dos apenados e a reinserção destes
na comunidade, a realidade nos presídios brasileiros contradizem estes preceitos.
Além da precariedade do sistema carcerário, a ineficiência da defesa processual
de criminosos de baixa renda, a morosidade do judiciário e o próprio racismo e a ideologia
de inferioridade em relação a algumas raças também fazem parte da triste realidade do
regime penal brasileiro. Apesar de toda a evolução que recebeu a lei penal brasileira ao longo
do tempo, é evidente no sistema criminal pátrio a ideologia histórica de inferioridade de
determinadas pessoas, levando em consideração sua etnia ou condição social.
Em primeiro lugar, por um conjunto de razões ligadas à sua história e sua posição
subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de
dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de “globalização”), e a
despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a sociedade
brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela
pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da
violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades. […] A
difusão das armas de fogo e o desenvolvimento fulminante de uma economia
estruturada da droga ligada ao tráfico internacional, que mistura o crime organizado
e a polícia, acabaram por propagar o crime e o medo do crime por toda a parte no
espaço público. Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a
juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do
subemprego crônicos continuará a buscar no “capitalismo de pilhagem” da rua
(como diria MaxWeber) os meios de sobreviver e realizar os valores do código de
honra masculino, já que não consegue escapar da miséria no cotidiano. O
crescimento espetacular da repressão policial nesses últimos anos permaneceu sem
efeito, pois a repressão não tem influência alguma sobre os motores dessa
criminalidade que visa criar uma economia pela predação ali onde a economia
oficial não existe ou não existe mais. (WACQUANT, 1999, p. 4-5)
Devido a soma dos problemas sociais que o Brasil vem enfrentando ao longo de
sua história é inegável que a criminalidade é fruto do sistema, da desigualdade social e de um
judiciário muitas vezes burocrático e ineficiente. Não se espera com isso atitudes paternalistas
em relação aos apenados, pois também se verifica atualmente a crescente necessidade de leis
mais severas e no rigor do cumprimento destas.
Ocorre que, embora o ordenamento jurídico brasileiro preveja que o condenado
não somente pague pelos seus ilícitos cometidos diante da sociedade, mas que também
seja reeducado para a sua reinserção no meio social, a realidade da maioria dos presídios
brasileiros não está de acordo com este mandamento legal. Este fato vem contribuindo cada
vez mais para o aumento da reincidência criminal e na própria apologia ao crime.
A TENDÊNCIA DE VITIMIZAÇÃO DO CRIMINOSO NO SISTEMA CARCERÁRIO
BRASILEIRO
A finalidade do Direito Penal na organização da sociedade
Entre as ramificações da ciência jurídica, é tarefa do direito penal descrever quais
atos ou condutas são considerados impróprios na sociedade, tipificar através do ordenamento
jurídico quais as atitudes que colocam em risco o direito à vida, à integridade física e do
patrimônio das pessoas que formam todo o grupo social.
Além de descrever quais comportamentos são considerados ilícitos para os
membros da nação brasileira, cabe ao direito penal cominar suas respectivas sanções, para
o caso de alguém vir a desrespeitar os mandamentos ali contidos e estabelecer regras para a
justa e correta aplicação da lei penal.
Por sua vez, a ciência penal possui importante caráter humanístico, já que ao
explicar a razão, a essência e o alcance das normas jurídicas vai estabelecer também critérios
objetivos para a sua correta aplicação, a fim de evitar a arbitrariedade nas condenações e
conseqüentemente sanções injustas e desproporcionais e ainda coibir que sejam consideradas
infrações penais condutas inofensivas.
O Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os
comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em
risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais,
cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as
regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação. A ciência penal,
por sua vez, tem por escopo explicar a razão, a essência e o alcance das normas jurídicas,
de forma sistemática, estabelecendo critérios objetivos para sua imposição e evitando, com
isso, o arbítrio e o casuísmo que decorreriam da ausência de padrões e da subjetividade
ilimitada na sua aplicação. Mais ainda, busca a justiça igualitária como meta maior,
adequando os dispositivos legais aos princípios constitucionais sensíveis que os regem, não
permitindo a descrição como infrações penais de condutas inofensivas ou de manifestações
livres a que todos têm direito, mediante rígido controle de compatibilidade vertical entre a
norma incriminadora e princípios como o da dignidade humana. (CAPEZ, 2011, p. 19)
O Direito não é uma ciência natural e exata apesar de conter o ordenamento
jurídico brasileiro normas positivadas. O Direito é uma ciência social e humana, pois tem a
responsabilidade de lidar com condutas humanas nem sempre previsíveis, onde nem sempre é
possível considerar a relação causa e efeito.
O estado penalizando
Este fato é constante principalmente na realidade dos magistrados brasileiros,
que precisam socorrer-se de argumentos doutrinários e jurisprudenciais para analisar cada
caso individualmente, para determinadas situações em que somente o respaldo da letra fria
da lei não é suficiente para a justa e equilibrada condenação de um delinqüente e a posterior
imposição de uma sanção penal proporcional ao delito cometido. 14
Cabe ao Estado determinar regras e codificar normas a fim de organizar o
convívio das pessoas em sociedade, com o objetivo de manter a paz e garantir a proteção dos
bens jurídicos de importante valor, garantidos em nossa Carta Magna. Ao ter alguma destas
regras desrespeitadas diante da prática e consumação do delito, surge no mesmo instante para
o Estado, na pessoa de um magistrado, o direito de punir, de aplicar uma sanção penal ao
infrator da norma jurídica.
Em contrapartida, a imposição da sanção penal não se dará de forma arbitrária,
sendo necessário e obrigatório que o Estado conceda ao acusado a oportunidade de defesa
e que os órgãos responsáveis pela investigação criminal que, no Brasil é tarefa incumbida
a policia judiciária e também ao Ministério Público, obtenham provas concretas para uma
possível condenação do réu. Caso condenado, será dado início por impulso processual
do próprio Estado a fase de execução penal, ocasião em que o apenado pagará diante da
sociedade pela prática de um ou mais atos proibidos por imposição legal, mediante uma
sanção penal imposta pelo próprio Estado.
O Estado, ente soberano que é, tem o poder de ditar as regras de convivência e,
para isso, pode aprovar normas que tenham por finalidade manter a paz e garantir
a proteção aos bens jurídicos considerados relevantes: vida, incolumidade física,
honra, saúde pública, patrimônio, fé pública, patrimônio público, meio ambiente,
direitos do consumidor etc. Essas normas, de caráter penal, estabelecem previamente
punições para os infratores. Assim, no exato instante em que ela é desrespeitada
pela prática concreta do delito, surge para o Estado o direito de punir (jus puniendi).
Este, entretanto, não pode impor imediata e arbitrariamente uma pena, sem conferir
ao acusado as devidas oportunidades de defesa. Ao contrário, é necessário que os
órgãos estatais incumbidos da persecução penal obtenham provas da prática do
crime e de sua autoria e que as demonstrem perante o Poder Judiciário, que, só ao
final, poderá declarar o réu culpado e condená -lo a determinada espécie de pena.
(LENZA, 2012, p. 31)
Após inúmeros debates ao longo da história envolvendo a possibilidade de se enquadrar o Direito como uma
ciência natural e exata entrelaçado com os ideais do positivismo, hoje é incontestável que o Direito finalmente
alcançou seu status de ciência social e humana. “Esse prejudicial raciocínio tornou viável a sustentação de que o
raciocínio e a lógica jurídica obedecem ao mesmo grau de certeza dos saberes naturais, que se estrutura a partir
das categorias da causa e do efeito.” (BITTAR, ALMEIDA, 2005, p. 44)
Não basta que a atuação do Estado se dê apenas de forma a delimitar o
comportamento de seus subordinados a fim de evitar agressões e o caos na sociedade. É
necessário também que a própria prestação jurisdicional seja eficiente, ágil e que estabeleça
aos jurisdicionados um fácil acesso aos seus serviços, inclusive ao que praticou um ato
reconhecido como crime através de uma previsão legal.
Um Poder Judiciário omisso, moroso e ineficiente contribui para a desvalorização
do povo para com a instituição. A descrença que o Direito Penal tem poder de servir
como meio de incutir na sociedade valores éticos e morais contribui para o aumento da
criminalidade, diante da idéia de que cometer crimes, mesmo que como única fonte de
subsistência, vale à pena. 15
A influência do estado na aplicação da pena
Para que o apenado cumpra com êxito a sanção criminal imposta em face do
delito cometido e seja reintegrado à vida social com uma chance mínima de reincidência, o
Estado tem o dever de fornecer condições carcerárias para isto, o que infelizmente não ocorre
em grande parte das penitenciárias brasileiras. Celas com número de pessoas que ultrapassam
em muito o limite permitido, a falta de condições de higiene, má alimentação e a ausência de
atividades socieductivas são alguns dos exemplos da realidade carcerária no Brasil.
Os maus tratos dos detentos por parte dos agentes prisionais e a violência entre os
próprios apenados tem sido alvo, inclusive, de ondas de violência urbana em alguns estados
brasileiros, a exemplo do que ocorreu no presídio de São Pedro de Alcântara, no estado de
Santa Catarina. No decorrer dos primeiros meses deste ano de 2013, várias cidades do Estado
foram alvo de ondas de violência por parte de outros criminosos e parentes destes presidiários,
em represália a denúncias de maus tratos ocorridos neste complexo penitenciário.16
Os maus tratos contra os detentos dentro das próprias penitenciárias é apenas
um dos exemplos que torna o sistema carcerário brasileiro ineficiente em cumprir com a sua
Por outro lado, na medida em que o Estado se torna vagaroso ou omisso, ou mesmo injusto, dando tratamento
díspar a situações assemelhadas, acaba por incutir na consciência coletiva a pouca importância que dedica aos
valores éticos e sociais, afetando a crença na justiça penal e propiciando que a sociedade deixe de respeitar
tais valores, pois ele próprio se incumbiu de demonstrar sua pouca ou nenhuma vontade no acatamento a tais
deveres, através de sua morosidade, ineficiência e omissão. (CAPEZ, 2011, p. 20)
O caso passou a ser investigado após a divulgação de um vídeo, no qual agentes armados e vestidos de preto
atiraram balas de borracha e bombas de efeito moral em detentos, que estavam organizados em fila, sem roupa,
ajoelhados e com a cabeça virada para a parede. Segundo o Deap, todos os agentes envolvidos foram afastados.
Após a divulgação, a Secretaria de Estado de Segurança Pública catarinense afirmou que o caso pode estar
relacionado com a onda de ataques no estado. (PASTORAL CARCERÁRIA)
missão de fazer com que o apenado cumpra sua sanção penal imposta pelo Estado e receba
condições de retornar ao seio de sua comunidade com a mínima chance de reincidência.
Além de ser uma condição comprovadamente ineficaz para reeducar o agente criminoso, as
condições subumanas dos cárceres brasileiros provocam indignação em toda a sociedade.
A pena intimidadora
O Direito Penal possui um importante papel na organização da sociedade, através
da qual, pelas normas estabelecidas pelo legislador, se impõe certo receio nas pessoas com
a finalidade de intimidar todos os participantes do grupo social de praticar determinados
atos e, além disto, é uma hábil oportunidade que possui o Estado de celebrar com os seus
administrados a observância dos compromissos éticos e morais em respeito e obediência às
normas impostas pela lei. 17
No entanto, para que os princípios e normas do Direito Penal consigam infundir
nas pessoas a convicção e necessidade de se fazer justiça simplesmente pelo crédito aos
valores éticos e morais propagados pela legislação, e não propriamente pelo receio de se
receber uma condenação criminal, é preciso que estas tenham condições de visualizar o
comprometimento da lei para com a segurança pública do país na prática.
Ao ressaltar a visão puramente pragmática, privilegiadora do resultado,
despreocupada em buscar a justa reprovação da conduta, o Direito Penal assume
o papel de mero difusor do medo e da coerção, deixando de preservar os valores
básicos necessários à coexistência pacífica entre os integrantes da sociedade política.
A visão pretensamente utilitária do direito rompe os compromissos éticos assumidos
com os cidadãos, tornando-os rivais e acarretando, com isso, ao contrário do que
possa parecer, ineficácia no combate ao crime. Por essa razão, o desvalor material
do resultado só pode ser coibido na medida em que evidenciado o desvalor da ação.
Estabelece-se um compromisso de lealdade entre o Estado e o cidadão, pelo qual as
regras são cumpridas não apenas por coerção, mas pelo compromisso ético-social
que se estabelece, mediante a vigência de valores como o respeito à vida alheia, à
saúde, à liberdade, à propriedade etc. (CAPEZ, 2011, p. 20)
No Brasil, a responsabilidade pela manutenção do sistema carcerário cabe ao
Poder Executivo, e não ao Judiciário a quem foi dada a responsabilidade de julgar e condenar
os participantes do grupo social que descumprirem as limitações imposta na lei. Ocorre
A missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a
vida, a saúde, a liberdade, a propriedade etc., denominados bens jurídicos. Essa proteção é exercida não apenas
pela intimidação coletiva, mais conhecida como prevenção geral e exercida mediante a difusão do temor aos
possíveis infratores do risco da sanção penal, mas sobretudo pela celebração de compromissos éticos entre
o Estado e o indivíduo, pelos quais se consiga o respeito às normas, menos por receio de punição e mais pela
convicção da sua necessidade e justiça. (CAPEZ, 2011, p. 19)
que, diante da realidade propagada principalmente pela mídia, concluem os leigos que os
problemas sociais do país envolvendo a alta taxa de criminalidade se devem, entre tantos
argumentos, a ausência de leis mais severas e à ineficiência do Judiciário.
Este fato, entre outros, contribui para que o criminoso no Brasil seja visto como
vítima de um sistema carcerário incapaz de proporcionar uma nova reinserção do apenado na
sociedade, sem que este possa achar atraente voltar à criminalidade. Ineficiente também, em
impelir que cada vez mais crianças e adolescentes façam sua iniciação no obscuro mundo da
marginalidade.
A tendência de vitimização do criminoso no sistema carcerário brasileiro
Antes de discorrer sobre o mérito do presente estudo, necessário se faz tratar da
questão envolvendo da acessibilidade à justiça aos réus e apenados. Sabe-se que tanto a Carta
Magna brasileira quanto a legislação penal estabelecem muitas garantias processuais para que
os acusados recebam tratamento isonômico e imparcial no decorrer da lide. Na prática, estas
garantias vão se manifestar na possibilidade de o acusado vir a receber o acompanhando de
um advogado que irá realizar sua defesa no âmbito processual.
A própria lei penal dispõe que para o réu revel e ao que carecer de condições de
patrocinar um causídico com recursos próprios, que o magistrado lhe nomeie um defensor
público, que irá realizar a defesa processual deste réu ou apenado de forma remunerada pelo
No entanto, sabe-se que no Brasil não há número de defensores dativos
suficiente para atender a demanda, fato que contribui para que muitos apenados sem
condições financeiras de pagar os honorários de um advogado particular fiquem mais tempo
encarcerados do que o prazo limite que foi fixado para a pena de detenção na decisão judicial.
Os primeiros esforços importantes para incrementar o acesso à justiça nos países
ocidentais concentram-se, muito adequadamente em proporcionar serviços jurídicos
para os pobres. Na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado
é essencial, senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e
procedimentos misteriosos, necessários para ajuizar um causa. Os métodos para
proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso
mesmo, vitais. Até muito recentemente, no entanto, os esquemas de assistência
judiciária da maior parte dos países eram inadequados. Baseavam-se, em sua maior
parte, em serviços prestados pelos advogados particulares, sem contraprestação
(munus honorificum). O direito ao acesso foi, assim, reconhecido e se lhe deu algum
suporte, mas o Estado não adotou qualquer atitude positiva para garanti-lo. De forma
previsível, o resultado é que tais sistemas de assistência judiciária eram ineficientes.
(CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 15)
A ausência de um programa de assistência judiciária digna e eficaz para o
acompanhamento e defesa processual do cidadão, mesmo que este tenha praticado atos
defesos em lei, vai ao encontro da morosidade do judiciário brasileiro, onde é comum em
muitos casos a prescrição da pretensão punitiva antes mesmo da condenação do acusado. A
morosidade do Poder Judiciário e sua incapacidade de propagar à sociedade uma ideologia
de respeito à moral, à ética, aos bons costumes e à própria lei faz com que os magistrados e
demais participantes da justiça sejam vistos como coniventes com a marginalidade.
No Brasil, para a maior parte da população a Justiça possui a imagem de ser
tolerante com os criminosos, parece demonstrar que as sanções penais são brandas, o que faz
com que muitos manifestem o pensamento de que o sistema dá margem à imputabilidade.
O que não deixa de ser verdade se levado em consideração as penais impostas aos crimes
geralmente cometidos por pessoas que se encontram à margem da sociedade, muitas vezes
delitos com caráter famélico, em face dos crimes cometidos por aqueles que detêm o Poder,
os popularmente conhecidos “crimes de colarinho branco” e suas penas insignificantes.
A morosidade do judiciário, a evidente desproporção das sanções penais em
relação aos delitos tipificados na lei, entre outros fatores que caracterizam o atual sistema
jurídico e carcerário brasileiro, são fatos que favorecem o aparecimento dos justiceiros com
a primitiva intenção de fazer justiça com as próprias mãos, situações que acrescentam pontos
à estatística criminal, ao aumento do número de violência nas cidades e dentro dos próprios
presídios e induzem o indivíduo à reincidência da prática delituosa.
A propósito, o desinteresse flagrante e a incapacidade patente dos tribunais em
fazer respeitar a lei encorajam todos aqueles que podem buscar soluções privadas
para o problema da insegurança – barricadas em “bairros fortificados”, guardas
armados, “vigilância” tolerada, e até encorajada, por parte dos justiceiros e das
vítimas de crimes -, o que tem por principal efeito propagar e intensificar a
violência. Pois, a despeito do retorno à democracia constitucional, o Brasil nem
sempre construiu um Estado de direito digno do nome. As duas décadas de ditadura
militar continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como
sobre as mentalidades coletivas, o que faz com que o conjunto das classes sociais
tendam a identificar a defesa dos direitos do homem com a tolerância à bandidagem.
De maneira que, além da marginalidade urbana, a violência no Brasil encontra uma
segunda raiz em uma cultura política que permanece profundamente marcada pelo
selo do autoritarismo. (WACQUANT, 1999, p. 6)
O sistema criminal brasileiro dá margem também para o surgimento de justiceiros
e desentendimentos ideológicos entre os próprios estudiosos e doutrinadores do Direito,
situação impulsionada principalmente pelas contradições que constam nas leis penais. Um
fato bem recente que se enquadra perfeitamente nesta situação foi a atuação do Ministro
Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro, por ocasião do
julgamento dos réus envolvidos no esquema da organização criminosa que ficou conhecida
popularmente por Mensalão.
Contradições recentes no mundo jurídico brasileiro
As contradições e obscuridades que constam na legislação penal brasileira abalam
não só a estrutura do Poder Judiciário diante da desmoralização da instituição, mas colocam
em risco os direitos e as garantias legais de todos os cidadãos, principalmente dos réus e
apenados pobres. Um fato que comprova esta linha de raciocínio é que após aproximadamente
oito anos de julgamento e discussões envolvendo o cabimento ou não de mais um recurso
processual, os réus do caso Mensalão continuam sem pagar diante da sociedade pelos delitos
que cometeram o que vem ocasionando indignação em toda a população. 18
Apesar de a legislação brasileira proibir veementemente, através, inclusive, de
dispositivo constitucional, sanções penais com doses de violência física como a tortura e
a pena de morte, a atuação da polícia nas ruas e dos agentes penitenciários de dentro dos
presídios agravam o aparente irremediável caos na área da segurança pública no país. Outro
fato que infelizmente contribui em muito para a crescente onda de violência por todo o
território brasileiro é o uso de força e violência nas atuações das policias, tanto civil (policia
judiciária) quanto militar.
Reações da sociedade brasileira moderna
São corriqueiras as manchetes jornalísticas envolvendo este tipo de procedimento
Durante a palestra, Jacinto ainda condenou o sistema penal brasileiro por dar espaço ao surgimento de
justiceiros, como a do ministro Joaquim Barbosa, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que
em sua visão, prestam um “desserviço” a sociedade, e por serem altamente moralistas. “Boa parte deles acham
que estão fazendo algo de bom, mas na verdade estão fazendo algo de mau. São eles que seguram a situação
como está, e enquanto estiver assim, segue sendo discriminatória. E o resultado desta prática é o que vemos
nas penitenciárias, e quem está nas penitenciárias?”, analisa. O erro dos justiceiros, segundo Coutinho, é por
atropelar todos os meios legais para instaurar um processo, sob o argumento de que os “fins justificam os
meios”. Em seu entendimento, a desordem do CPP, e a forma como os processos são conduzidos, pode colocar
em risco os direitos e garantias dos cidadãos, principalmente os mais pobres e vulneráveis. Coutinho – que
integrou a comissão de juristas que elaborou o anteprojeto de reforma do CPP, que agora tramita como projeto
de lei na Câmara dos Deputados – afirma que a reforma não é perfeita, mas está em maior consonância com a
Constituição Brasileira, mas agora enfrenta a falta de vontade política para aprovar o texto, por ampliar o leque
das garantias e direitos das pessoas nos tramites do processo penal. (Bahia Notícias, 2013)
nas atuações policias, mesmo quando cabe a estes profissionais apenas acompanhar e
organizar manifestações pacíficas, por exemplo. A cada incursão da policia nas favelas dos
grandes centros urbanos brasileiros morrem em combate criminosos, os próprios policiais e
inocentes moradores destas áreas perigosas que não possuem qualquer envolvimento com a
marginalidade.
A instituição responsável pela manutenção da ordem e paz social, muitas vezes é
a causa do aumento de violência em locais considerados de risco, onde os moradores destas
áreas vivem em condições subumanas e a prática de delitos muitas vezes é realizada com a
finalidade de promover a subsistência do grupo familiar, o que é um fato vergonhoso para um
país que detém uma das primeiras posições no ranking da economia mundial.
Depois, a insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada,
mas nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem. O uso rotineiro
da violência letal pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte
da polícia civil (através do uso da “pimentinha” e do “pau-de-arara” para fazer
os suspeitos “confessarem”), as execuções sumárias e os “desaparecimentos”
inexplicados geram um clima de terror entre as classes populares, que são seu alvo,
e banalizam a brutalidade no seio do Estado. Uma estatística: em 1992, a polícia
militar de São Paulo matou 1.470 civis – contra 24 mortos pela polícia de Nova
York e 25 pela de Los Angeles -, o que representa um quarto das vítimas de morte
violenta da metrópole naquele ano. É de longe o recorde absoluto das Américas.
Essa violência policial inscreve-se em uma tradição nacional multissecular de
controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos
agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta
contra a “subversão interna” se disfarçou em repressão aos delinqüentes. Ela apóia-
se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição
cultural entre feras e doutores, os “selvagens” e os “cultos”, que tende a assimilar
marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem de
classe e a manutenção da ordem pública se confundem. (WACQUANT, 1999, p. 5)
Coincidentemente, uma vez mais se vislumbra o histórico preconceito étnico e
racial também nas atuações da polícia. Em um país onde políticos corruptos se livram de
condenações penais graças à inimputabilidade que proporciona a própria “Justiça”, parece
haver lugar nas lúgubres penitenciárias brasileiras somente os pobres, “pretos” e prostitutas.
Com isso, há um dizer bastante conhecido por aqui: No Brasil, cadeia somente para os três
Diante de tantos fatos que tornam ineficientes o sistema penal brasileiro, sem
dúvidas, o que mais contribui para esta triste realidade é a situação de grande parte das
penitenciárias do país. Em nada se parecem com um local com a importante tarefa de reeducar
o ser humano com desvios de conduta para a sua saudável reinserção na sociedade.
O relato colacionado abaixo descreve perfeitamente a situação lúgubre e em
condições desumanas das penitenciárias em todo o território brasileiro:
Uma última razão, de simples bom senso, milita contra um recurso acrescido
ao sistema carcerário para conter a escalada da miséria e dos distúrbios urbanos
no Brasil. É o estado apavorante das prisões do país, que se parecem mais com
campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito
industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para
alguma função penalógica – dissuasão, neutralização ou reinserção. O sistema
penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro
Mundo, mas levadas a uma escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e
pela indiferença estudada dos políticos e do público: entupimento estarrecedor dos
estabelecimentos, o que se traduz por condições de vida e de higiene abomináveis,
caracterizadas pela falta de espaço, ar, luz e alimentação (nos distritos policiais,
os detentos, freqüentemente inocentes, são empilhados, meses e até anos a fio em
completa ilegalidade, até oito em celas concebidas para uma única pessoa, como na
Casa de Detenção de São Paulo, onde são reconhecidos pelo aspecto raquítico e tez
amarelada, o que lhes vale o apelido de “amarelos”); negação de acesso à assistência
jurídica e aos cuidados elementares de saúde, cujo resultado é a aceleração
dramática da difusão da tuberculose e do vírus HIV entre as classes populares;
violência pandêmica entre detentos, sob forma de maus-tratos, extorsões, sovas,
estupros e assassinatos, em razão da superlotação super acentuada, da ausência de
separação entre as diversas categorias de criminosos, da inatividade forçada (embora
a lei estipule que todos os prisioneiros devam participar de programas de educação
ou de formação) e das carências da supervisão. (WACQUANT, 1999, p. 7)
Se as condições de vida dentro de um cárcere brasileiro é semelhante a jaula de
um animal em grande parte dos estabelecimentos prisionais, a situação é ainda mais crítica se
quem tiver pagando por seus erros perante a sociedade for mulher. Em todo o país há apenas
um número aproximado de cinqüenta e três penitenciárias específicas para receber mulheres.
Celas em condições lúgubres e precárias, contendo um número bem maior que
o seu limite permitiria, a ausência de distribuição de refeições adequadas, a proliferação de
vírus e doenças principalmente sexuais representam um pouco do cotidiano dos detentos
brasileiros, independentemente do seu gênero e opção sexual. A situação torna-se mais
premente no caso das mulheres que necessitam de tratamento especial, principalmente de
acompanhamento médico durante a gestação, já que perante o descaso do Poder Executivo,
responsável pela construção e manutenção das casas de detenção, não há necessidade de se
levar em conta tais especificidades, ou seja, para o governo brasileiro presidiário é um ser
somente, sem a definição de ser um homem ou uma mulher. 19
Denúncias de violência sexual entre os detentos sejam entre homens ou entre
mulheres e a violência física contra apenados homossexuais são constantes. No Brasil, a
lei resguarda a integridade física dos apenados que estão encarcerados, mas esta garantia
conferida aos que se encontram privados de seu direito de ir e vir não é suficiente para que o
Estado promova atitudes com a finalidade de coibir tais violências.
Com a intenção de evitar a violência e agressões entre os detentos dentro dos
presídios por causa dos atos relacionados ao preconceito contra o homossexualismo, o
governo do estado brasileiro da Paraíba tomou uma atitude inédita em todo o país. Aos
poucos, todos os presídios da região vão contar com alas exclusivas para detentos gays,
lésbicas, bissexuais, e travestis. Esta atitude do governo paraibano exalta os preceitos
relacionados aos Direitos Humanos e às garantias e princípios fundamentais que pertencem a
todos os indivíduos e ainda faz com que o Estado cumpra com a sua obrigação de proteger a
integridade física dos detentos.
Presos gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis da Paraíba têm à disposição
desde o início do mês alas exclusivas nos três principais presídios do Estado. A
medida, inédita no país, foi adotada após denúncias de abusos sexuais e violência
física e psicológica, principalmente contra os travestis. Os abusos foram
denunciados pela Comissão Estadual de Direitos Humanos, que constatou casos de
violência em vistorias em maio e junho. Numa primeira etapa, dois presídios em
João Pessoa e outro em Campina Grande, no interior do Estado, ganharam essas alas
separadas. Cerca de 40 presos já solicitaram ingresso aos setores. Segundo o
secretário de Administração Penitenciária, Walber Virgolino, a proposta é levar o
projeto a todos os presídios (18 penitenciárias e 61 cadeias públicas) até o próximo
ano, inclusive com a construção de pavilhões exclusivos. “As pessoas têm o direito
de escolher com quem querem se relacionar. Precisávamos acabar com essas
violações”, afirma o secretário. O presidente da comissão da diversidade sexual da
seção local da OAB, José de Melo Neto, diz que o novo sistema
possibilita “tratamento humanizado” aos presos. Integrante dessa comissão do
governo do Estado e presidente de entidade LGBT, Renan Palmeira afirma que a
iniciativa é um avanço. “Com a ala separada, eles ganham cidadania e respeito.
Passam a ser tratados pelo nome social e a ter direitos antes negados, como visitas
íntimas.” O advogado especialista em criminalística Sheyner Asfora disse que a
iniciativa é importante, mas expõe a falta de controle estatal.”Isso deixa claro que
quem determina as regras nos presídios são os próprios presos.” (DE LUCCA, 2013)
Em 2012, durante a Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, o
Brasil foi repreendido por desrespeitar os direitos humanos em seu sistema carcerário, especialmente por ignorar
questões de gênero. Ou seja, é internacionalmente reconhecido que o sistema penitenciário feminino brasileiro
é inadequado. O poder público parece ignorar que está lidando com mulheres e oferece um “pacote padrão”
bastante similar ao masculino, nos quais são ignoradas a menstruação, a maternidade, os cuidados específicos
de saúde, entre outras especificidades femininas. É até mesmo difícil dizer exatamente quantos locais abrigam
detentas no Brasil hoje, já que muitas delas são mantidas em delegacias de polícia e carceragens superlotadas
e com estrutura inadequada Brasil afora. Em dezembro de 2012, porém, um levantamento do Ministério da
Justiça apontou que existiam 53 penitenciárias, 4 colônias agrícolas, 7 casas de albergados, 9 cadeias públicas e
5 hospitais de custódia (para presas com problemas mentais) no país. (GELEDES, 2013)
Conclusão
Diante dos fatos até aqui narrados, é nítida a crescente tendência de vitimização
do criminoso diante da atual situação do sistema carcerário brasileiro, já que o Estado não
oferece condições dignas para a reeducação social do delinqüente. Fato este que, somado aos
inúmeros problemas sociais que o país possui, vem contribuindo para desvalorização dos
princípios morais e éticos da grande massa da população fomentando a prática de crimes,
inclusive entre crianças e adolescentes. A crítica situação do sistema carcerário brasileiro não
só dá margem para o aumento da criminalidade e da oportunidade de reincidência, mas marca
certo retrocesso do próprio Direito Penal, pois dá margem para a prática de atos da antiga
forma de vingança privada.
Outrossim, importante salientar a necessidade de normas penais mais rígidas
e eficazes afim de evitar a prática e a reincidência delituosa e uma maior efetividade dos
Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário no combate à criminalidade. Caso contrário,
quem é bandido continuará a ser considerado como vítima de nossa realidade social e jurídica,
encurralando para as margens da sociedade as pessoas de bem e observadoras dos preceitos
legais e morais.
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