Conflitos Jurídicos entre o Direito a Vida e o Direito a Liberdade Religiosa

Introdução

A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, detalha os direitos e deveres coletivos e individuais de cada cidadão, sendo que, no seu caput, apresenta a forma mais expressa sobre direito fundamental à liberdade com a seguinte redação: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade[…]”.

Contudo religião, como crença em algo superior, acompanha o homem desde o início de sua existência. Porém, para que fosse aceita a religião em um determinado grupo, era preciso que o líder manifestasse a mesma crença, caso contrário, seus seguidores poderiam ser perseguidos e até mortos por isso. A liberdade religiosa, é algo bem recente, embora no passado o império romano tenha tido tolerância e deixado a Igreja Católica pregar o seu dogma religioso.

Esta liberdade religiosa deve ser mantida a todo custo, porém, as vezes, este direito entra em conflito com outros direitos e por isto algumas questões devem ser levadas em conta quando este tema é levado à discussão. A liberdade religiosa pode ser limitada pelo direito a proteção de animais? E se for, se matar um animal é um ato cruel, o que dizer dos 200.000 frangos abatidos por dia, só no Brasil, sem que fosse tomadas providências a respeito? Ou se a liberdade religiosa incomoda o direito de sossego, com sua poluição sonora? Mas, ai vemos que a mesma poluição, e as vezes até maior, incomodam quando um bar na esquina residencial com musica ao vivo coloca som acima as vezes de 150 decibéis, e ninguém toma providências? E ainda pior, quando uma mãe nega o direito a vida ao seu filho, pois sua religião não permite transfusão de sangue, o que fazer? A questão da Liberdade Religiosa é extremamente complexa e delicada. É complexa porque a compreensão desse tema depende de uma abordagem interdisciplinar e, por conseguinte, de incursões que vão além da ciência jurídica (direito), envolvendo, também, a história, a teologia, a antropologia, a ciência da religião e a filosofia. O tema é delicado porque revela o desafio de se conviver num mundo plural, em que a intolerância religiosa ainda está presente. Existe nas religiões uma tendência à intolerância, ademais, o tema envolve questões complexas, Pois quando levamos em conta que o direito fundamental à vida é, sem sombra de dúvida, o direito mais perseguido por toda a humanidade, pensamos como seria se ele fosse atrapalhado em algum ponto por outro direito fundamental. O objetivo deste trabalho é levar ao debate até que ponto existe conflitos jurídicos entre dois valores ou direitos tutelados pela Constituição Federal de 1988, a liberdade religiosa e o direito à vida.

Capítulo I – Breves noções de direito fundamental

Afirma Sarlet que “os direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoas humana” 01. Desta forma também se posiciona a maioria dos autores que se dedica a estudar o apaixonante tema.

Para Pinho:

Direitos fundamentais são os indispensáveis à pessoa humana, necessários para assegurar a todos uma existência digna, livre e igual. Não basta ao Estado reconhecê-los formalmente; deve buscar concretizá-los, incorporá-los no dia-a-dia dos cidadãos e de seus agentes.02

Alexandre de Moraes, apesar de utilizar a terminologia direitos humanos fundamentais, apresenta a seguinte conceituação:

O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade da pessoa humana. 03

Do conceito apresentado por Perez Luño, sobre os direitos fundamentais do homem, colhe-se o seguinte:

[…] considerando-os um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. 04

Utilizaremos a expressão direitos fundamentais pois esta locução é utilizada para se referir aos direitos positivados na constituição de um determinado Estado.

Conjunto institucionalizado de direitos e garantias, que visa à limitação do arbítrio do poder estatal, assegurando ao ser humano uma vida digna, livre e pautada na igualdade entre os homens, de acordo com um determinado momento histórico e os valores nele inseridos.

Destacamos o fator histórico por acreditarmos que os direitos fundamentais não surgem ao acaso e nem a qualquer tempo. Desta forma, se posiciona Bobbio:

Do ponto de vista teórico, sempre defendi – continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. 05

Salientamos, no entanto, que não há unanimidade teórica a respeito da justificativa dos direitos fundamentais, sendo possível encontrarmos uma variedade de correntes filosófico-jurídicas, abordadas por Paulo Gustavo Gonet Branco da seguinte forma:

[…] para os jusnaturalistas, os direitos do homem são imperativos do direito natural, anteriores e superiores à vontade do Estado. Já para os positivistas, os direitos do homem são faculdades outorgadas pela lei e reguladas por ela. Para os idealistas, os direitos humanos são idéias, princípios abstratos que a realidade vai acolhendo ao longo do tempo, ao passo que, para os realistas, seriam o resultado direto de lutas sociais e políticas. 06

O que ocorre, segundo Bobbio, é uma crise dos fundamentos dos direitos do homem, sendo que “deve-se reconhecê-la, mas não tentar superá-la, buscando outro fundamento absoluto para o que se perdeu”, considerando que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los”.

Os direitos fundamentais, apresentados por vários autores como fruto de reivindicações sociais em determinadas épocas, sempre se vinculam à imposição de limites à arbitrariedade do poder governante e seus agentes, no intuito de resguardar os direitos do seres humanos individualmente considerados. No entanto, definir como nasceram os direitos humanos fundamentais é matéria que ainda hoje suscita controvérsias.

Mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como reconquista de algo que, em termos primitivos, se perdeu quando a sociedade se dividira entre proprietários e não proprietários.

Desde épocas remotas, como no Antigo Egito e Mesopotâmia, já no terceiro milênio antes de Cristo se falava em proteger direitos individuais. Neste tocante, destaca-se o Código de Hammurabi (1690a.C), como sendo talvez a primeira codificação a apresentar um rol de direitos direcionados a todos os homens. Este código, tal como os atuais, consagrava o direito à vida, à propriedade, à honra, à dignidade, à família, ressaltando a supremacia das leis em relação aos governantes.

Influências filosófico-religiosas podem ser entendidas como alicerces na construção dos direitos individuais de igualdade e liberdade do homem, considerando-se a propagação da doutrina Budista (500 a.C) e posteriormente, os estudos desenvolvidos na Grécia. Os gregos já se preocupavam em garantir a participação política dos cidadãos, e a crença na existência de um direito natural anterior às leis escritas.

Porém, para Alexandre Moraes,

“[…] foi o direito Romano que estabeleceu um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos arbítrios estatais”. A lei das doze tábuas pode ser considerada a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão.07

Segundo Moraes, tais mecanismos de proteção individual em relação ao Estado podem ser apontadas como a origem dos direitos individuais do homem, apesar de apresentarem uma concepção muito diferente da atual sobre tais direitos.

Então não se consagrou a idéia de que foi na Antigüidade que surgiram os primeiros direitos fundamentais, porém, foi nesta época que apareceram algumas das idéias-chaves que, posteriormente, vieram a influenciar diretamente o pensamento jus naturalista e a sua concepção de que o ser humano, pelo simples fato de existir, é titular de alguns direitos naturais e inalienáveis.

Com o surgimento do Cristianismo, os ideais de direitos individuais ganharam força pela propagação da mensagem de igualdade entre homens, independentemente de origem, raça, sexo ou credo, vindo contribuir diretamente para a formação de um entendimento sobre a dignidade da pessoa humana.

Também a concepção de que os homens, por serem criados à imagem e semelhança de Deus, possuem alto valor intrínseco e uma liberdade inerente à sua natureza anima a idéia de que eles dispõem de direitos que devem ser respeitados por todos e pela sociedade política.Foi sobre este fundamento que se edificou a teoria do direito natural defendido pela doutrina de Santo Tomás de Aquino.

Existem registros de que, na Idade Média, diversos documentos reconheceram direitos individuais, sempre com o escopo de limitar o poder do Estado, sendo que o forte desenvolvimento destes direitos se deu entre meados do século XIII e meados do século XX.

Cabe-nos, no entanto, destacar a importância da Revolução dos Estados Unidos como fato histórico de alto relevo na evolução dos direitos fundamentais, já que após esta revolução surgiram documentos de grande valor histórico e jurídico, tais como:

– Declaração de Direitos da Virgínia (1776), que proclamava o direito à vida e à liberdade e à propriedade;

– Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, também de 1776 e realizada basicamente por Thomas Jefferson, tendo como principal objetivo a limitação do poder estatal;

– Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, que visou limitar o poder do Estado, estabelecendo a separação dos poderes estatais e também diversos direitos fundamentais.

A importância dos documentos oriundos da Revolução dos Estados Unidos é tamanha que Gonet Branco faz a seguinte consideração:

[…] situa-se o ponto fulcral do desenvolvimento dos direitos fundamentais na segunda metade do século XVIII, sobretudo com o Bill of Rigths de Virgínia (1776), quando se dá a positivação dos diretos tidos como inerentes ao homem, até ali mais afeiçoados a reivindicações políticas e filosóficas do que a normas jurídicas obrigatórias, exigíveis juridicamente.08

Contudo, para Alexandre de Moraes, foi com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que se consagraram normativamente os direitos fundamentais:

A consagração normativa dos direitos fundamentais, porém, coube à França, quando, em 26-8-1789, a Assembléia Nacional promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com 17 artigos. Dentre as inúmeras e importantíssimas previsões, podemos destacar os seguintes diretos humanos fundamentais: princípio da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência á opressão, associação política, princípio da legalidade, princípio da reserva legal e anterioridade em matéria penal, princípio da presunção de inocência; liberdade religiosa, livre manifestação de pensamento.

Paulo Bonavides, também acredita que foi com a Declaração dos Direitos dos Homens de 1789 que se manifestou pela primeira vez a universalidade inerente aos direitos à liberdade e à dignidade humana como ideal de todo ser humano.

Destaca o autor:

Constatou-se então com irrecusável veracidade que as declarações antecedentes de ingleses e americanos podia, talvez, ganhar em concretude, mas perdiam em espaço de abrangência, portanto se dirigiam a uma camada social privilegiada (os barões feudais), quando muito a um povo ou a uma sociedade que se libertava politicamente, conforme era o caso das antigas colônias americanas, ao passo que a Declaração Francesa de 1789 tinha por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, e pelas condições da época, foi a mais abstrata de todas as formulações solenes já feitas acerca da liberdade.09

Posteriormente, a Constituição Francesa de 1793 normatizou os direitos fundamentais consagrados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, incluindo os direitos ao devido processo legal, à ampla defesa, à proporcionalidade entre delitos e penas, à liberdade de profissão, ao direito de petição e aos direitos políticos.

No decorrer da História, depois de firmados os primeiros passos na Inglaterra, Estados Unidos e França, houve um crescimento na efetivação dos direitos fundamentais, principalmente durante o constitucionalismo liberal do século XIX. A Constituição da Espanha, por exemplo, de 1812, conhecida como Constituição de Cadis, consagrou vários direitos fundamentais. Nesta, todavia, o direito à liberdade religiosa apresentava-se amputado, visto que estabelecia a religião católica como oficial e proibia o exercício de qualquer outra.

No mesmo sentido, de grande expressão para a evolução dos direito fundamentais foram as constituições de Portugal, de 1822 e da Bélgica, de 1831, sendo que esta, além de reconhecer direitos também já declarados por outros países, estabelecia a liberdade de culto religioso, direito de reunião e associação.

No entanto, foi a Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848 que ampliou os direitos fundamentais consagrando, além dos direitos humanos tradicionais, os direitos à liberdade do trabalho e da indústria, e à assistência aos desempregados, às crianças abandonadas, aos enfermos e aos velhos sem recursos, cujas famílias não pudessem socorrer.

Ao adentrar o século XX, várias foram as constituições influenciadas pela Declaração de Direitos da Constituição Francesa de 1848, podendo-se citar: Constituição Mexicana de 1917, Constituição de Weimar de 1919, Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, de 1918, seguida pela primeira Constituição Soviética, do mesmo ano, e a Carta do Trabalho, na Itália em 1927.

Os direitos fundamentais, trazidos pelas declarações e gradualmente inseridos nas constituições, assumiram um sentido cada vez mais universalizante, passando a ser objeto de reconhecimento supra-estatal em documentos declaratórios.

Com o intuito de redigir um documento declaratório que servisse de referência aos 21 países da América, criou-se, na ONU (Organização das Nações Unidas) uma Comissão dos Direitos do Homem. Essa comissão, após analisar questões referentes à defesa dos direitos individuais tradicionais e, ao mesmo tempo, destacar a importância dos novos direitos sociais, aprovou em 10 de dezembro de 1948, em assembléia da ONU em Paris, a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Destaca José Afonso da Silva:

A Declaração Universal dos Direitos do Homem contém trinta artigos, precedidos de um Preâmbulo com sete considerandos, em que reconhece solenemente: a dignidade da pessoa humana, como base da liberdade da justiça e da paz; o ideal democrático com fulcro no progresso econômico, social e cultural; o direito de resistência à opressão; finalmente, a concepção comum desses diretos. 10

Constitui o Preâmbulo com a proclamação, pela Assembléia Geral da ONU, da referida Declaração, o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da Sociedade, tendo esta declaração constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensinamento e pela educação, a desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e assegurar-lhes, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o reconhecimento e a aplicação universais e efetivos.

Ainda segundo J. A. da Silva, durante a elaboração da Declaração Universal dos Direitos do Homem, surgiram várias questões teóricas, como por exemplo, se dever-se-ia elaborar uma declaração ou uma convenção, o que faria grande diferença na eficácia dos direitos nela constantes. Quando se optou por uma declaração, surgiu a questão da não obrigatoriedade de cumprimento, motivo pelo qual a ONU tem procurado patrocinar vários pactos e convenções, no intuito de garantir a eficácia de direitos.

Destacam-se como de grande expressão o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, aprovados pela Assembléia Geral da ONU em 16 de dezembro de 1966 na cidade de Nova York. O escopo de tais pactos era atribuir eficácia jurídica à Declaração de 1948, sendo que a adesão do Brasil só ocorreu em 1992, alguns anos após o período ditatorial.

No que se refere à criação de instrumentos para assegurar a efetividade dos direitos do homem reconhecidos na Declaração Universal de 1948, a Europa deu passos largos e importantes através do Conselho da Europa, que elaborou vários documentos, culminando na Carta Social Européia, aprovada em 1961 em Turim. A Carta é composta por normas sobre os direitos e garantias econômicos e sociais do homem europeu.

Antes de todos estes documentos internacionais e multinacionais citados, o primeiro, em nível multinacional, destacando os direitos do homem foi a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, cujo texto agasalha a maiorias dos direitos individuais e sociais inscritos na Declaração Universal de 1948. Ela foi aprovada pela IX Conferencia Internacional Americana, reunida em Bogotá, de 30 de março a 2 de maio de 1948, antecedendo, assim, à da ONU cerca de 8 meses. Na mesma Conferência foi aprovada também a Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, consubstanciando os direitos sociais do homem americano. Mais importante, no entanto, é a Convenção Americana de Direitos Humanos, chamada Pacto de San José de Costa Rica, adotada nesta cidade em 22.11.69, e também institucionalizada, como meios de proteção daqueles direitos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, prevista na Resolução VIII, da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores (Santiago do Chile, agosto de 1959), e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que vigora desde 18.6.78, mas no Brasil, só entrou em vigor em 1992, por via de adesão, já que nem tinha sido assinada ainda por nós.

Foi a falta de eficácia jurídica de documentos que declaravam direitos humanos, que motivou a inserção destes direitos no texto das constituições, conferindo caráter concreto ao que, até então, se considerava abstrato. Com tal inserção, os direitos fundamentais elevaram-se de plano, sendo que atualmente são premissas para a aplicação de qualquer outra norma em um Estado democrático.

Ressaltamos que, através deste caminho evolutivo pelo qual passaram os direitos fundamentais, aconteceu, ao mesmo tempo, um processo evolutivo de valores e conceitos, principalmente no que tange ao direito à liberdade e à dignidade humana. Por essa razão o estudo dos direitos fundamentais deve ser feito de forma contextualizada para que se garanta a estes direitos, plena eficácia.

Para a classificação dos direitos fundamentais, costuma-se recorrer ao critério das gerações, baseado grosso modo na ordem cronológica em que os diversos direitos foram sendo reconhecidos ao longo da história moderna. Tal divisão, contudo, não deve ser interpretada como uma afronta ao princípio da indivisibilidade dos direitos humanos, mas tão-somente como um recurso metodológico para melhor compreensão de certos aspectos seus. Inicialmente, como acabamos de mencionar, tal classificação é útil para que se tenha uma noção da formação histórica do conjunto de direitos humanos hodiernamente reconhecidos. Na medida em que cada geração foi reconhecida a partir de lutas políticas, tal classificação permite também que se tenha em mente as influências ideológicas que são subjacentes a cada direito. Por fim, essa classificação é útil na implementação dos direitos humanos, posto que facilita a compreensão de aspectos como titularidade, conteúdo e formas de exercício de cada direito.

É importante, entretanto, notar que da classificação em gerações não deve ser deduzido nem que uma geração surge naturalmente do desenvolvimento da anterior, como nos seres vivos, nem que o surgimento de uma nova geração torna a anterior obsoleta. Ao contrário, a Assembléia Geral da ONU já reiteradamente afirmou a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. No mesmo diapasão, a mais atual literatura a respeito ressalta, com base nos princípios da expansão e melhoria em grau e extensão da proteção conferida pelos direitos humanos e da aplicação da norma mais favorável ao protegido, a complementaridade e a necessidade de uma interpretação harmonizante entre as diversas gerações, assim como entre os diversos instrumentos normativos.

A primeira geração é a dos direitos fundamentais da liberdade, e conhecida em conjunto como direitos civis e políticos. Refletindo o individualismo liberal-burguês emergente dos séculos XVII e XVIII, os direitos que a compõem tendem a impor obrigações negativas, ou seja, abstenções, ao invés de intervenções, ao Estado e têm mais um sentido de “liberdade de” que de “direito a”. São direitos de titularidade individual, embora alguns sejam exercidos em conjuntos de indivíduos. Essa geração inclui os direitos à vida, liberdade, segurança, não discriminação racial, propriedade privada, privacidade e sigilo de comunicações, ao devido processo legal, ao asilo face a perseguições políticas, bem como as liberdades de culto, crença, consciência, opinião, expressão, associação e reunião pacíficas, locomoção, residência, participação política, diretamente ou por meio de eleições.

A segunda geração é a dos direitos da igualdade, a saber são os direitos sociais, econômicos e culturais, decorrem de aspirações igualitárias inicialmente vinculadas aos Estados marxistas e social-democratas, dominaram posteriormente no pós- 2ª Guerra Mundial com o advento do Estado-social. Têm por objetivo garantir aos indivíduos condições materiais tidas por seus defensores como imprescindíveis para o pleno gozo dos direitos de primeira geração e, por isso, tendem a exigir do Estado intervenções na ordem social segundo critérios de justiça distributiva. Incluem os direitos a segurança social, ao trabalho e proteção contra o desemprego, ao repouso e ao lazer, incluindo férias remuneradas, a um padrão de vida que assegure a saúde e o bem-estar individual e da família, à educação, à propriedade intelectual, bem como as liberdades de escolha profissional e de sindicalização.

Os direitos de terceira geração são os direitos da fraternidade ou solidariedade. São direitos fundamentais de terceira geração o direito à paz, ao desenvolvimento sustentável, à posse comum do patrimônio comum da humanidade, direito ao meio ambiente… Devem ser compreendidos à luz do processo de ascensão e declínio do Estado-Nação ao longo da segunda metade do século XX (1990: 659).

Tendem a cristalizar-se enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduos, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano. Por isso mesmo, chama-os também de direitos difusos. Considerados direitos coletivos por excelência, sua concretização depende de um esforço coordenado em nível mundial sem precedentes e ainda por ser realizado.

Capitulo II – Qual a evolução histórica do direito fundamental de Liberdade Religiosa

A Constituição Federal consagra como direito fundamental a liberdade de religião, prescrevendo que o Brasil é um país laico. Com essa afirmação queremos dizer que, consoante a vigente Constituição Federal, o Estado deve se preocupar em proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita compreensão religiosa, proscrevendo a intolerância e o fanatismo. Deve existir uma divisão muito acentuada entre o Estado e a Igreja (religiões em geral), não podendo existir nenhuma religião oficial, devendo, porém, o Estado prestar proteção e garantia ao livre exercício de todas as religiões.

É oportuno que se esclareça que a confessionalidade ou a falta de confessionalidade estatal não é um índice apto a medir o estado de liberdade dos cidadãos de um país. A realidade nos mostra que tanto é possível a existência de um Estado confessional com liberdade religiosa plena (v.g., os Estados nórdicos europeus), como um Estado não confessional com clara hostilidade aos fatos religiosos, o que conduz a uma extrema precariedade da liberdade religiosa (como foi o caso da Segunda República Espanhola).

O fato de ser um país secular, com separação quase que total entre Estado e Religião, não impede que tenhamos em nossa Constituição algumas referências ao modo como deve ser conduzido o Brasil no campo religioso. Tal fato se dá uma vez que o Constituinte reconheceu o caráter inegavelmente benéfico da existência de todas as religiões para a sociedade, seja em virtude da pregação para o fortalecimento da família, estipulação de princípios morais e éticos que acabam por aperfeiçoar os indivíduos, o estímulo à caridade, ou simplesmente pelas obras sociais benevolentes praticadas pelas próprias instituições.

Pode-se afirmar que, em face da nossa Constituição, é válido o ensinamento de Soriano de que o Estado tem o dever de proteger o pluralismo religioso dentro de seu território, criar as condições materiais para um bom exercício sem problemas dos atos religiosos das distintas religiões, velar pela pureza do princípio de igualdade religiosa, mas deve manter-se à margem do fato religioso, sem incorporá-lo em sua ideologia.

Por outro lado, não existe nenhum empecilho constitucional à participação de membros religiosos no Governo ou na vida pública. O que não pode haver é uma relação de dependência ou de aliança com a entidade religiosa à qual a pessoa está vinculada. Salienta-se que tal fato não impede as relações diplomáticas com o Estado do Vaticano, porque aí ocorre relação de direito internacional entre dois Estados soberanos, não de dependência ou de aliança, que não pode ser feita.

A liberdade religiosa foi expressamente assegurada uma vez que esta liberdade faz parte do rol dos direitos fundamentais, sendo considerada por alguns juristas como uma liberdade primária.

Com isso podemos salientar que a liberdade religiosa é o princípio jurídico fundamental que regula as relações entre o Estado e a Igreja em consonância com o direito fundamental dos indivíduos e dos grupos a sustentar, defender e propagar suas crenças religiosas, sendo o restante dos princípios, direitos e liberdades, em matéria religiosa, apenas coadjuvantes e solidários do princípio básico da liberdade religiosa.

Não existe como separar o direito à liberdade de religião do direito às outras liberdades, existindo um inter-relacionamento intenso entre todas as liberdades por ele mencionadas (liberdade de ensinança, de consciência, liberdade de pensamento, de imprensa, de pregação etc.).

Manoel Gonçalves Ferreira Filho também relaciona a liberdade religiosa com a liberdade política. São suas palavras:

“Sem plena liberdade religiosa, em todas as suas dimensões — compatível, com diversos tipos jurídicos de relações das confissões religiosas com o Estado — não há plena liberdade política. Assim como, em contrapartida, aí, onde falta a liberdade política, a normal expansão da liberdade religiosa fica comprometida ou ameaçada.” 11

É importante que se perceba que a idéia de liberdade religiosa não pode ser entendida de uma maneira estática, sem atentar-se para as mudanças de nossa sociedade.

Para se falar em liberdade religiosa é importante analisar-se o próprio conceito de religião, pois o que para um homem é religião, pode ser considerado por outro como uma superstição primitiva, imoralidade, ou até mesmo crime,  não havendo possibilidade de uma definição judicial do que venha a ser uma religião.

Se não é possível uma conceituação legal do que vem a ser religião, podemos tentar definir o conceito com apoio na filosofia.

Em conformidade com as ensinanças de Aldir Guedes Soriano, religião é a “crença na (ou sentimento de) dependência em relação a um ser superior que influi no nosso ser — ou ainda — a instituição social de uma comunidade unida pela crença e pelos ritos”.12

O vocábulo religião pode ser entendido em um sentido subjetivo ou em um sentido objetivo. Subjetivamente, religião é homenagem interior de adoração, de confiança e de amor que, com todas as suas faculdades, intelectuais e afetivas, o homem vê-se obrigado a prestar a Deus, seu princípio e seu fim. Objetivamente, religião seria o conjunto de atos externos pelos quais se expressa e se manifesta a religião subjetiva (oração, sacrifícios, sacramentos, liturgia, ascise, prescrições morais).

A liberdade de religião engloba, na verdade, três tipos distintos, porém intrinsecamente relacionados de liberdades: a liberdade de crença; a liberdade de culto; e a liberdade de organização religiosa.

A liberdade de crença é a liberdade de escolha da religião, a liberdade de aderir a qualquer seita religiosa, a liberdade (ou o direito) de mudar de religião, mas também compreende a liberdade de não aderir a religião alguma, assim como a liberdade de descrença, a liberdade de ser ateu e de exprimir o agnosticismo.

Mas não compreende a liberdade de embaraçar o livre exercício de qualquer religião, de qualquer crença.

A liberdade de culto consiste na liberdade de orar e de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para tanto.

A liberdade de organização religiosa diz respeito à possibilidade de estabelecimento e organização de igrejas e suas relações com o Estado.

A liberdade de religião não está restrita à proteção aos cultos e tradições e crenças das religiões tradicionais (Católica, Protestante-Cristã, Judaica e Muçulmana), não havendo sequer diferença ontológica (para efeitos constitucionais) entre religiões e seitas religiosas. Creio que o critério a ser utilizado para se saber se o Estado deve dar proteção aos ritos, costumes e tradições de determinada organização religiosa não pode estar vinculado ao nome da religião, mas sim aos seus objetivos. Se a organização tiver por objetivo o engrandecimento do indivíduo, a busca de seu aperfeiçoamento em prol de toda a sociedade e a prática da filantropia, deve gozar da proteção do Estado.

Por outro lado, existem organizações que possuem os objetivos mencionados e mesmo assim não podem ser enquadradas no conceito de organização religiosa (a maçonaria é um exemplo desse tipo de sociedade). Penso que em tais casos o Estado é obrigado a prestar o mesmo tipo de proteção dispensada às organizações religiosas, uma que vez existe uma coincidência de valores a serem protegidos, ou seja, as religiões são protegidas pelo Estado simplesmente porque as suas existências acabam por beneficiar toda a sociedade (esse benefício deve ser verificado objetivamente, não bastante para tanto o simples beneficiamento para a alma dos indivíduos em um Mundo Superior — os atos, ou melhor, a conseqüência dos atos, deve ser sentida nesse nosso mundo). Existindo uma coincidência de valores protegidos, deve existir uma coincidência de proteção.

Devemos ampliar ainda mais o conceito de liberdade de religião para abranger também o direito de proteção aos não-crentes, ou seja, às pessoas que possuem uma posição ética, não propriamente religiosa (já que não dá lugar à adoção de um determinado credo religioso), saindo, em certa medida do âmbito da fé, uma vez que a liberdade preconizada também é uma liberdade de fé e de crença, devendo ser enquadrada na liberdade religiosa e não simplesmente na liberdade de pensamento.

Pontes de Miranda reforça esses argumentos ao afirmar que “tem se perguntado se na liberdade de pensamento caberia a liberdade de pensar contra certa religião ou contra as religiões” 13.

Salienta que nas origens, o princípio não abrangia essa emissão de pensamento, tendo posteriormente sido incluído nele alterando-se-lhe o nome para ‘liberdade de crença’, para que se prestasse a ser invocado por teístas e ateus. Afirma, por fim, que liberdade de religião é liberdade de se ter a religião que se entende, em qualidade, ou em quantidade, inclusive de não se ter.

As proteções à liberdade religiosa contidas nos documentos internacionais não possuem efeito de lei: elas estão somente moldando a legislação de direitos humanos nas nações participantes e são característica fundamental de uma ordem mundial em desenvolvimento.

No âmbito nacional, podemos destacar a liberdade religiosa como um dos mais importantes direitos individuais previstos na Constituição da República.

Este direito está gravado no art. 5º, inciso VI, de nossa atual Constituição, que textualmente diz: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Os princípios modernos de liberdade religiosa, através dos quais os governos declaram sua neutralidade sobre questões religiosas, permitindo a cada cidadão individual, com base na sua própria dignidade humana, adotar suas crenças religiosas sem medo de represália, é conseqüência natural do esclarecimento. Ele recebeu reconhecimento universal na Declaração de 1948, sem dúvida o maior marco da evolução da liberdade religiosa internacional.

Capítulo III – O que se entende sobre Direito à Vida

Antes de abordarmos o aspecto jurídico que envolve o direito à vida, cumpre-nos ao menos tentar conceituar este presente-mistério chamado vida, aqui classificado como ser que é objeto de direito fundamental.

Ao abordar a questão do direito à vida, reconhecemos a dificuldade de apresentar uma definição para o vocábulo vida, não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o risco de ingressar no campo da metafísica supra-real, que não nos levará a nada.

Inicialmente tentaremos definir o significado de vida para que possamos emoldurar a abrangência e atuação de nossa inquirição.

O vocábulo vida possui inúmeros significados, dificultando por demais um sentido pronto e acabados. Trata-se de assunto cuja conceituação é tida como inextrincável por muitos autores. Todavia, diligenciaremos no sentido de buscar diferentes concepções de tratadistas para iniciarmos nosso deslinde.

Interessante a posição de não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o risco de ingressar no campo da metafísica suprarreal, que não nos levará a nada .

É sabido que a tarefa de definir o sentido exato de vida revela-se por demais colossal, em virtude da dificuldade sobre o tema. Mesmo porque a vida está em constante movimento, acontecendo a todo instante diante de nós. Alguns estudiosos, sobretudo das Ciências da Saúde, dizem ser a vida a continuidade de todas as funções de um organismo vivo. Ou então o período compreendido entre a concepção e morte. Trata-se, como podemos inferir, de idéia muito vaga, carecedora de precisão, não correspondendo a nenhum dado sensorial ou concreto, insuficiente para conceituar, por conseguinte, a proposição em comento. Em suma, a definição não consegue apresentar características individuadoras, inequívocas, do que seja vida.

Circunstância a tornar ainda mais espinhoso o ofício de atribuir uma definição à vida, é a relação que se tem por hábito fazer com seu contraposto morte. Autores tanatologistas costumam afirmar, que, por exclusão, vida é tudo aquilo que não está morto, ou seja, que não faleceu, não finou, não expirou, não pereceu. Embora atribuam clareza solar às suas definições, cremos que tal assertiva é por demais incompleta, senão, defeituosa.

No texto constitucional inserido no artigo 5o em seu caput, não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade.

É mais um processo vital, que se instaura com a concepção ou germinação vegetal, transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que mude de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte.

Já a definição de vida (do latim vita), é o conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução, e outras; existência; o estado ou condição dos organismos que se mantêm nessa atividade desde o nascimento até a morte; o espaço de tempo que decorre desde o nascimento até a morte.

Irrefutável, portanto, que o objeto da tutela constitucional é a vida humana, levando a pontificar que, por isso é que ela constitui a fonte primária de os outros bens jurídicos. É o centro gravitacional sobre o qual órbita todos os outros direitos do gênero humano. Em conseqüência, temos que, do asseguramento do direito à vida defluem todas as outras situações, quer sejam jurídicas, políticas, econômicas, morais ou religiosas do Homem (in genere). Assim , de nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos, ou até mesmo o mais importante dentro todos.

A tarefa de consubstanciar juridicamente, de maneira indiscutível, o direito à vida, cumpre ao Direito Constitucional, viga mestra de todas as outras ramificações. Por isso ao tecer escorreita dissecação sobre o objeto de estudo do Direito Constitucional, declaramos que o outro aspecto de que se reveste o Direito Constitucional é que ele abrange a estrutura jurídica do Estado, suas normas fundamentais, a definição e o funcionamento dos seus órgãos, os direitos públicos individuais e outros assuntos, estejam eles, ou não estejam, consignados no texto da Constituição.

Essencial é a importância do tema versado que, não bastasse o legislador constituinte que concebeu o ordenamento jurídico como um sistema escalonado e gradativo de normas, que em cujo topo deveria figurar a norma fundamental, iniciaremos a breve análise acerca dos direitos à vida pelo que dispõe nossa Constituição da República de 1988 sobre a matéria  colocá-lo no caput do 5o — quando prefacia o Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais) da Carta Política.

A prioridade que o legislador constitucional de 1988 imprimiu ao direito à vida é altamente relevante.  Este coloca-se à frente de outros e, a mens legistaroris, afigura-nos no sentido de que a vida humana seja considerada um ponto central e eqüidistante em relação aos demais direitos. É a coluna cervical do arcabouço jurídico, de onde emanam todos os demais direitos.

Vida, no texto constitucional não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo vital, que se instaura com a concepção, transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando então de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida.

Ao discorrermos sobre a vida humana, devemos sempre ter em mente que tudo o que o direito tutela está diretamente ligado à sua organização e manutenção. Uma vez, existindo vida, automaticamente existirá a necessidade de regulá-la e protegê-la. A vida é a fonte primária de todos os outros bens jurídicos.

Dentro da teoria dos direitos naturais, o direito à vida é passível apenas de reconhecimento pelo Estado, vez que, é inerente á própria vida. Em verdade o direito fundamental do ser humano à vida, é lei não criada pelo Estado, mas pelo Estado apenas reconhecida, é que pertence ao ser humano pelo simples fato de ter sido concebido. É-lhe inerente, e não concedida.

Se o direito à vida for considerado como o mais fundamental dos direitos, por dele derivarem todos os demais direitos, este, então, é regido pelas premissas constitucionais da inviolabilidade e irrenunciabilidade. Isso significa que o direito à vida não pode ser desrespeitado por terceiros, tampouco pelo Estado, não podendo dispor dele o indivíduo almejando sua morte.

É função do Estado assegurar o direito à vida,  não apenas no sentido de estar vivo, mas também no sentido de garantir ao cidadão uma vida digna quanto à sua subsistência. Neste sentido, o Estado deverá garantir esse direito a um nível adequado com a condição humana, respeitando os princípios fundamentais da cidadania, dignidade da pessoa humana e valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Grande parcela da doutrina defende que o direito à vida é o primeiro e mais importante de todos os direitos, pois, se assim não fosse, de nada adiantaria assegurar os outros direito fundamentais.

O direito à vida é o principal direito individual, o bem jurídico de maior relevância tutelado pela ordem constitucional, pois o exercício dos demais direitos depende de sua existência.

A tarefa de consubstanciar juridicamente o direito à vida cumpre ao Direito Constitucional, viga mestra de todas as ramificações do ordenamento pátrio. No entanto, há de ser situado o direito à vida, sob o enfoque do direito civil, nos chamados direitos de personalidade como, também, no direito penal, quanto às sanções previstas aos atentados contra a vida.

O direito á vida é inato, quem nasce com vida tem direito a ela. Com o nascimento da personalidade (entrada do nascimento do ser humano no mundo jurídico), nasce o direito à vida como irradiação de eficácia do fato jurídico stricto sensu do nascimento do ser humano com vida. Nas leis penais, muitas são as regras jurídicas que protegem a vida.

Ao considerarmos o direito à vida um direito inato, acreditamos que cabe ao Estado oferecer condições para seu pleno exercício, agindo através de medidas legais, por meio do seu poder de polícia, ou através da não intervenção na seara dos direitos individuais.

Capítulo IV – Quem são os Testemunhas de Jeová

A Religião pode ser definida como um conjunto de crenças relacionadas com aquilo que a humanidade considera como sobrenatural, divino e sagrado, bem como o conjunto de rituais e códigos morais que derivam dessas crenças.

Dentro do que se define como religião pode-se encontrar muitas crenças e filosofias diferentes. As diversas religiões do mundo são de fato muito diferentes entre si. Porém ainda assim é possível estabelecer uma característica em comum entre todas elas. É fato que toda religião possui um sistema de crenças no sobrenatural, geralmente envolvendo divindades ou deuses. As religiões costumam também possuir relatos sobre a origem do Universo, da Terra e do Homem, e o que acontece após a morte. A maior parte crê na vida após a morte.

A religião não é apenas um fenômeno individual, mas também um fenômeno social. A igreja, o povo escolhido (o povo judeu), o partido comunista, são exemplos de doutrinas que exigem não só uma fé individual, mas também adesão a um certo grupo social. Atentem, por exemplo, às perseguições do Partido Comunista Chinês à seita Falun Gong. O Partido não quer que o povo chinês preste lealdade a nenhum outro grupo ou organização exceto o Partido Comunista Chinês.

A idéia de religião com muita frequência contempla a existência de seres superiores que teriam influência ou poder de determinação no destino humano. Esses seres são principalmente deuses, que ficam no topo de um sistema que pode incluir várias categorias: anjos, demônios, elementais, semi-deuses, etc.

Outras definições mais amplas de religião dispensam a idéia de divindades e focalizam os papéis de desenvolvimento de valores morais, códigos de conduta e senso cooperativo em uma comunidade.

O movimento religioso conhecido por Testemunhas de Jeová assume-se como uma religião cristã não trinitária. Afirmam adorar exclusivamente a Jeová e consideram-se seguidores de Jesus Cristo. Possuem adeptos em 236 países e territórios autónomos, ascendendo a mais de seis milhões e setecentos mil praticantes, apesar de reunirem um número muito superior de simpatizantes. Crêem que a sua religião é a restauração do verdadeiro cristianismo, mas rejeitam a classificação de serem fundamentalistas no sentido em que o termo é comumente usado. Afirmam basear todas as suas práticas e doutrinas no conteúdo da Bíblia.

As Testemunhas de Jeová são bem conhecidas pela sua regularidade e grande persistência na obra de evangelização de casa em casa e nas ruas. Possuem um dos maiores parques gráficos do mundo visando a impressão e distribuição de centenas de milhões de exemplares da Bíblia e de publicações baseadas nela. Como parte da sua adoração a Deus, assistem semanalmente a reuniões congregacionais e a grandes eventos anuais, onde o estudo da Bíblia constitui a principal temática. São ainda conhecidas por recusarem muitas das doutrinas centrais das religiões ditas cristãs, pelo apego a fortes valores que afirmam ser baseados na Bíblia, nomeadamente quanto à neutralidade política , à moralidade sexual, à honestidade e à recusa em aceitar transfusões de sangue.

As Testemunhas de Jeová iniciaram suas atividades nos tempos modernos por meio de Charles Taze Russell, a partir da década de 70 do Século XIX. Russell e alguns amigos formaram um pequeno grupo de estudo não sectário da Bíblia, em Allegheny (hoje integrada na cidade de Pittsburgo, Pensilvânia), nos Estados Unidos da América.

Hoje, as Testemunhas de Jeová constituem um grupo mundial de milhões de membros, agrupados em células locais designadas por Congregações, unidas sob uma estrutura mundial que coordena todas as suas actividades. Apesar de possuírem o que chamam de organização e nela existirem homens que assumem responsabilidades locais ou mais abrangentes, as Testemunhas não formam distinção entre clero e leigos, tal como acontece com muitas denominações religiosas. Os seus responsáveis não possuem títulos honoríficos, não usam vestimenta ou símbolos distintivos, não se lhes impõe o celibato, não são assalariados e espera-se que sejam os primeiros a dar o exemplo de boa conduta e moral aos restantes membros da congregação.

As Testemunhas de Jeová encaram a sua religião como um modo de vida, sendo que todos os outros interesses, incluindo o emprego e a família, giram em torno da adoração exclusiva que prestam a Jeová, o seu Deus. Assim, não importam o que façam, incluindo a selecção de diversão ou de vestuário, de carreira na escola ou na profissão ou mesmo a escolha de cônjuge, o comportamento e interacção com a comunidade, nos negócios ou em lazer, tudo isso é influenciado pela decisão que tomaram de dedicar a sua vida incondicionalmente a Jeová. A Bíblia é encarada como um verdadeiro manual de aplicação prática e obrigatória em todos os campos da vida.

Ao longo da sua história, as suas crenças, doutrinas e práticas religiosas têm sido, amiúde, alvo de algumas controvérsias. Especialmente visadas têm sido as suas doutrinas sobre a vinda iminente de um Armagedom global, o seu trabalho intenso de proselitismo, a sua neutralidade e distanciamento quanto a tradições seculares ou assuntos políticos, a prática da excomunhão ou desassociação de membros, a rejeição do uso de sangue na alimentação e na medicina entre outras temáticas.

Capítulo IV – Quais os conflitos entre a Liberdade Religiosa e o Direito à Vida

A recusa à terapia transfusional por motivação religiosa, manifestada por pacientes em perigo de vida ou não, é mais freqüente do que se imagina.

Antes de qualquer menção ao assunto da recusa, devemos ressaltar o que é uma terapia transfusional, ao qual, consiste na transfusão de sangue, órgãos ou tecidos que impedem a degeneração do corpo e da vida humana.

A transfusão de sangue é uma prática médica que consiste em injetar sangue a um paciente que tenha sofrido de grande perda ou que esteja afetado por uma doença no seu próprio sangue. A primeira transfusão de sangue foi efectuada em 15 de Junho de 1667. É um tipo de terapia que tem se mostrado muito eficaz em situações de choque, hemorragias ou doenças sanguíneas. Frequentemente usa-se transfusão em intervenções cirúrgicas, traumatismos, hemorragias digestivas ou em outros casos em que tenha havido grande perda de sangue.

Durante algum tempo no passado muitas pessoas tinham receio de aceitar transfusão com medo de contraírem uma doença infecto-contagiosa. Hoje não precisamos ter este tipo de preocupação, pois o sangue colhido de um doador passa por diversos testes antes de ser transfundido em um paciente.

Porém, com fundamentos religiosos, algumas pessoas se recusão a praticar este tipo de terapia.

Essa recusa desencadeia uma série de conseqüências sob o aspecto dos Direitos Fundamentais, por se tratar de situação diretamente ligada ao ser humano, envolvendo sua liberdade, vida e dignidade.

O fundamento para a proibição do recebimento de transfusão está na natureza sacra conferida ao sangue através da interpretação feita pelas Testemunhas de Jeová, dos seguintes textos bíblicos:

“Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento: eu vos dou tudo isto, como vos dei a erva verde. Somente não comereis carne com a sua alma, com seu sangue.” (Gênesis 9: 3-4.) 14

Assim como em todas as religiões, vários dogmas fazem parte da doutrina das Testemunhas de Jeová, sendo que o fato de não aceitarem tratamento médico com transfusão de sangue é de conhecimento público e causador de grande polêmica no meio médico e jurídico.

As Testemunhas de Jeová crêem tão intensamente em seus dogmas, que o recebimento de transfusão de sangue é negado sob qualquer circunstância, inclusive em emergências que conferem ao paciente iminente risco de vida, criando, então, uma celeuma jurídica.

“A todo israelita ou a todo estrangeiro, que habita no meio deles, e que comer qualquer espécie de sangue, voltarei minha face contra ele, e exterminá-lo-ei do meio de meu povo” (Levítico 17:10) 15

Portanto, partindo da interpretação feita do texto acima transcrito, as Testemunhas de Jeová crêem que Deus os proibiu de receber sangue alheio. Quem o receber será considerado impuro aos olhos do Senhor, sendo este o pior castigo que lhes poderia acometer.

Julio de Queiroz, ao tratar sobre o ato médico e as convicções religiosas, apresenta um motivo para o entendimento de que é proibido receber sangue alheio, “a bíblia na Idade Média era escrita exclusivamente em latim, sendo que somente o clero católico a podia ler. Quando houve a Reforma iniciada por Marinho Lutero (1483-1546), na Alemanha, a bíblia foi traduzida para as línguas nacionais. Uma das conseqüências foi a tradução literal de seus textos, os quais foram lidos por pessoas semi-alfabetizadas, filosófica e teologicamente despreparadas, que deram origem a vários grupos religiosos.” 16

Tais interpretações fizeram com que alguns de seus membros, como aqueles que não aceitam a transfusão de sangue para doentes, voltassem a conceitos pré-cristãos, baseados na proibição feita ao povo hebreu, de não tomar sangue alheio, pois alguns dos povos vizinhos de Israel, ritualmente, bebiam o sangue das vitimas sacrificadas aos seus deuses.

No entanto, em que pese a versão apresentada pelo autor citado, preferimos não entrar na seara da discussão sobre a interpretação realizada pela religião de que tratamos. Partimos do ponto de que essa interpretação é a base de um dogma religioso e como tal deve ser admitido, respeitado e analisado, pela ótica jurídica.

É neste sentido que levanta-se a questão da ocorrência de um conflito entre dois valores ou direitos tutelados pela Constituição, a liberdade religiosa e o direito à vida.

Com efeito, argumenta-se que as Testemunhas de Jeová não têm a intenção de renunciar à vida quando negam a terapia transfusional. Apenas manifestam a vontade de serem submetidas a tratamento alternativo ao sangue, como ilustra Soriano:

Não obstante, os que professam a orientação das Testemunhas de Jeová não pretendem renunciar à vida, porquanto almejam continuar vivos. Assim sendo não recusam tratamento médico. Argumentam, entretanto, que se poderiam utilizar tratamentos alternativos para se evitarem as transfusões sangüíneas, que, por sinal podem acarretar inúmeras infecções, inclusive a temível AIDS. 17

Atualmente, é visível a evolução da ciência médica quanto ao desenvolvimento de tratamentos e cirur